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Paulo Sampaio

Mulher trans e ex-companheira registram criança com 2 mães biológicas no RS

Ágata com o filho, na beira do rio Guaíba, em Porto Alegre - Arquivo Pessoal
Ágata com o filho, na beira do rio Guaíba, em Porto Alegre Imagem: Arquivo Pessoal

Colunista do UOL

28/08/2020 04h00

Filho de uma mulher trans e da ex-companheira dela, um garoto nascido há dois anos em Canoas já veio ao mundo modificando uma regra do registro civil no Rio Grande do Sul.

Foi com base nessa mudança que a Justiça decidiu na terça-feira (18) que a criança poderia ter os nomes das duas mães biológicas na certidão de nascimento. Gabriela Souza, advogada que acompanhou o processo, explica que "a medida não é lei, nem vale para outros casos, mas deve criar jurisprudência".

É o primeiro registro no Brasil de dupla maternidade biológica com concepção natural.

DNA não bastava

Mesmo tendo participado da concepção da criança, a professora Ágata Vieira Mostardeiro, 27, não conseguiu incluir seu nome na certidão como genitora biológica, porque se identificava como mulher trans.

Na ocasião, ela estava providenciando a retificação de seu nome e sexo na carteira de identidade.

[Em março de 2018, em decisão unânime, o STF (Supremo Tribunal Federal) autorizou a mudança do nome e do sexo no registro civil, sem necessidade de a pessoa se submeter à cirurgia de redesignação sexual nem de ter autorização judicial. A decisão tornou possível fazer a mudança diretamente no cartório. Além disso, transexuais e transgêneros passaram a ter o direito de mudar o nome e o gênero, sem precisar passar por avaliação médica ou psicológica].

Antes da hormonioterapia

Ágata e a ex-companheira, que tem 28 anos, viveram um relacionamento de quatro anos. Ela explica que o bebê foi planejado, e nasceu quando as duas estavam juntas havia dois anos. "Programamos tudo para que eu só começasse a transição com hormônios depois que minha companheira já estivesse no terceiro mês de gestação", diz Ágata, que se formou em biologia mas é educadora social.

Apesar de o menino ter o DNA dela, o cartório só permitiu que se registrasse o nome da mãe que gestou a criança. As duas se mantiveram próximas, e lutaram juntas para que o nome de Ágata fosse incluído na certidão.

Desde a maternidade

A criança só foi registrada quinze dias depois de nascer, uma vez que o cartório do hospital suscitou dúvida a respeito da participação da mãe trans na concepção. De acordo com a advogada, "a decisão do judiciário foi insatisfatória em 2018, já que, mesmo atendendo ao pedido de registro, exigiram a apresentação de atestado médico comprovando que o sexo biológico de Ágata não havia sido alterado na época da concepção". A professora fez a transição de gênero, mas não se submeteu à cirurgia de redesignação sexual.

"O registro somente seria autorizado com exame de DNA ou comprovação da possibilidade de o filho ser gerado biologicamente, por mais absurdo que isso possa parecer", explica Gabriela.

Ainda por cima,

Como o bebê adoeceu pouco depois do nascimento, foi necessário registrar uma certidão socioafetiva para fazer a inserção dele no plano de saúde. Esse registro só contemplava o nome da mãe que deu à luz.

Para conseguir a certidão com a urgência necessária, a companheira de Ágata precisou assinar um documento declarando ausência de paternidade.

Com tantas dificuldades burocráticas, o caso virou uma ação judicial com pedido de dupla maternidade. "Solicitamos a retificação do registro de nascimento dele para que fosse retirada a averbação de mãe socioafetiva e ela fosse considerada mãe biológica, como de fato é", diz a advogada.

Heteronormativos e mais...

A decisão, que levou dois anos para ser executada, é histórica. "Mostra que as famílias existem não só na modalidade heteronormativa [pai e mãe] e que por isso devem ser criadas novas leis que contemplem outras orientações", diz Gabriela.

"O Estado, através dos cartórios, do Ministério Público e do Judiciário não podem usar a falta de conhecimento para disfarçar preconceitos e afrontar a dignidade da pessoa humana. Todas as famílias importam."

Um outro caso

Em 2017, uma adolescente de 15 anos de Palmeira dos Índios, em Alagoas, conseguiu ter os nomes de duas mães na certidão de nascimento: a biológica e a adotiva.

A decisão foi do juiz José Miranda Santos Junior, da 1ª Vara de Infância e Juventude de Palmeira dos Índios. Como na certidão de nascimento não constava o nome do pai biológico, ela tem apenas o nome do adotivo....