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Reinaldo Azevedo

Ordem do Dia sobre 64 nem sentido faz. Ou se aplaude o golpe ou a anistia

O presidente Jair Bolsonaro deixa o Ministério da Defesa ao lado do general Fernando Azevedo e Silva, titular da pasta, no dia 27 de março. Ordem do Dia sobre 1964 é inoportuna - Foto:  Antonio Cruz - 27.fev.2020/Agência Brasil
O presidente Jair Bolsonaro deixa o Ministério da Defesa ao lado do general Fernando Azevedo e Silva, titular da pasta, no dia 27 de março. Ordem do Dia sobre 1964 é inoportuna Imagem: Foto: Antonio Cruz - 27.fev.2020/Agência Brasil

Colunista do UOL

31/03/2020 08h38

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O ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva, e os respectivos comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica divulgaram uma nota alusiva ao golpe militar de 1964. Com tantos cadáveres que há e muitos outros a haver, vítimas do coronavírus, resolveram revolver o passado para fazer má história.

Dados os múltlplos desafios no presente, que sentido faz voltar 56 anos na história para produzir incongruências autocomplacentes, que, por óbvio, não param de pé? Reproduzo a nota e comento.
*
Ordem do Dia Alusiva ao 31 de Março de 1964

Brasília, DF, 31 de março de 2020.

O Movimento de 1964 é um marco para a democracia brasileira. O Brasil reagiu com determinação às ameaças que se formavam àquela época.

O entendimento de fatos históricos apenas faz sentido quando apreciados no contexto em que se encontram inseridos. O início do século XX foi marcado por duas guerras mundiais em consequência dos desequilíbrios de poder na Europa. Ao mesmo tempo, ideologias totalitárias em ambos os extremos do espectro ideológico ameaçavam as liberdades e as democracias. O nazifascismo foi vencido na Segunda Guerra Mundial com a participação do Brasil nos campos de batalha da Europa e do Atlântico. Mas, enquanto a humanidade tratava os traumas do pós-guerra, outras ameaças buscavam espaços para, novamente, impor regimes totalitários.

Naquele período convulsionado, o ambiente da Guerra Fria penetrava no Brasil. Ingredientes utópicos embalavam sonhos com promessas de igualdades fáceis e liberdades mágicas, engodos que atraíam até os bem-intencionados. As instituições se moveram para sustentar a democracia, diante das pressões de grupos que lutavam pelo poder. As instabilidades e os conflitos recrudesciam e se disseminavam sem controle.

A sociedade brasileira, os empresários e a imprensa entenderam as ameaças daquele momento, se aliaram e reagiram. As Forças Armadas assumiram a responsabilidade de conter aquela escalada, com todos os desgastes previsíveis.

Aquele foi um período em que o Brasil estava pronto para transformar em prosperidade o seu potencial de riquezas. Faltava a inspiração e um sentido de futuro. Esse caminho foi indicado. Os brasileiros escolheram. Entregaram-se à construção do seu País e passaram a aproveitar as oportunidades que eles mesmos criavam. O Brasil cresceu até alcançar a posição de oitava economia do mundo.

A Lei da Anistia de 1979 permitiu um pacto de pacificação. Um acordo político e social que determinou os rumos que ainda são seguidos, enriquecidos com os aprendizados daqueles tempos difíceis.

O Brasil evoluiu, tornou-se mais complexo, mais diversificado e com outros desafios. As instituições foram regeneradas e fortalecidas e assim estabeleceram limites apropriados à prática da democracia. A convergência foi adotada como método para construir a convivência coletiva civilizada. Hoje, os brasileiros vivem o pleno exercício da liberdade e podem continuar a fazer suas escolhas.

As Forças Armadas acompanharam essas mudanças. A Marinha, o Exército e a Aeronáutica, como instituições nacionais permanentes e regulares, continuam a cumprir sua missão constitucional e estão submetidas ao regramento democrático com o propósito de manter a paz e a estabilidade.

Os países que cederam às promessas de sonhos utópicos, ainda lutam para recuperar a liberdade, a prosperidade, as desigualdades e a civilidade que rege as nações livres.

O Movimento de 1964 é um marco para a democracia brasileira. Muito mais pelo que evitou.

Fernando Azevedo e Silva - Ministro da Defesa

Ilques Barbosa Junior - Comandante da Marinha

Edson Leal Pujol - Comandante do Exército

Antônio Bermudez - Comandante da Aeronáutica

COMENTO
O golpe, que eles poderiam chamar "revolução", pode ter sido marco de um monte de coisas, jamais da democracia. Escrevendo assim, os fardados pretendem nos assustar ou apenas se expressam mal? No primeiro caso, é uma iniciativa inútil. No segundo, convém chamar historiadores competentes.

Se aquilo foi marco, então pode se repetir. Afinal, um "marco da democracia" não é experiência que se deva dispensar também como parâmetro. Tivessem se limitado a dizer que foi um marco local da "Guerra Fria", vá lá; que foi um marco no combate ao terrorismo de esquerda — e notem que nem entro no mérito dos meios empregados para enfrenta-lo —, vá lá também...

Marco da democracia? Aí não dá!

Democracia não depõe presidente eleito com tanque. A Lei do Impeachment é de 1950 e já estava em vigor.

Democracia não rasga a Constituição.

Democracia não fecha o Congresso.

Democracia não cassa o direito de o povo eleger seus governantes.

Democracia não usa tortura e execução como política oficial de Estado.

"Ah, mas não houve nada de bom no Regime Militar?" Houve. Mas democracia não era.

Assim como democráticos não eram os grupos armados de esquerda. Mas, como se vê, não estão por aí a emitir "ordens do dia", certo? Acrescente-se que todo terrorismo é detestável. O de esquerda não é diferente. Mas nenhum terrorismo é tão nefasto como o de Estado. Como se pode notar pela ordem do dia, deixa marcas profundas. E se tenta até fazer poesia com elas...

Os nossos militares estão vivendo uma fase de regressão intelectual. Tomara que retomem logo o rumo. Deixam-se trair por uma certa truculência até ingênua quando escrevem: "Ingredientes utópicos embalavam sonhos com promessas de igualdades fáceis e liberdades mágicas, engodos que atraíam até os bem-intencionados"...

Segundo esses nossos historiadores, veio o golpe, e "o Brasil evoluiu, tornou-se mais complexo, mais diversificado e com outros desafios. As instituições foram regeneradas e fortalecidas e assim estabeleceram limites apropriados à prática da democracia. A convergência foi adotada como método para construir a convivência coletiva civilizada. Hoje, os brasileiros vivem o pleno exercício da liberdade e podem continuar a fazer suas escolhas."

Pois é...

Cinquenta e seis anos depois, "a renda média mensal de 60% dos trabalhadores brasileiros — o correspondente a 54 milhões de brasileiros empregados com carteira assinada ou na informalidade — foi menor que um salário mínimo em 2018. Os dados são da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnadc), que trata de todas as fontes de rendimento, divulgada nesta quarta-feira pelo IBGE. Segundo o documento, o rendimento médio real mensal recebido por esses trabalhadores, classificados como os 60% da população com os menores rendimentos, foi de R$ 928 no ano passado, o que corresponde a apenas a 40% da renda média de todos os trabalhadores ocupados, estimada em R$ 2.234. O valor é inferior do salário mínimo em 2018: R$ 954." (Época).

Segundo dados de 2018, o Brasil é o segundo país mais desigual do mundo, de acordo com o Relatório de Desenvolvimento Humano (RDH) da ONU. Só perde para o Catar. A epidemia de coronavírus pode causar uma devastação no país porque milhões vivem apinhados em favelas e cortiços. Quase a metade dos lares não tem esgoto tratado.

Não estou à caça de culpados neste texto. Isso fica para a luta política. Mas me incomoda confrontar tais dados com o trecho "Ingredientes utópicos embalavam sonhos com promessas de igualdades fáceis e liberdades mágicas, engodos que atraíam até os bem-intencionados". Não sou de esquerda. Quando era, já não endossava os meios a que recorreram extremistas de esquerda nas décadas de 60 e 70. Não repudio apenas os métodos. Também não abraço as teses socialistas. Mas é preciso tomar cuidado quando se censuram "ingredientes utópicos" e "promessas de igualdades fáceis" num país, senhores signatários da ordem do dia, em que o mais fácil é produzir desigualdades.

Vejam o caso da Previdência. Comparem as regras que valem para os militares e as que passaram a valer para o conjunto dos trabalhadores. Como vocês podem notar, o Brasil continua terreno fértil para os "sonhos de igualdade". E eles serão necessariamente difíceis.

Deixem o passado para os historiadores e parem de celebrar golpes de estado. Até porque, ora vejam, o mesmo documento exalta a anistia.

Quem me acompanha no blog desde 2006 e eventuais leitores de antes sabem que sempre me opus à revisão da Lei da Anistia. O debate é longo e profundo e remete à natureza do que é, afinal, uma anistia, que não pode ser revista por princípio, entendo eu.

Mas, senhores militares, se a Anistia foi o processo de pacificação a que Vossas Senhorias se referem, então não dá para conciliar a sua exaltação com a apologia do golpe. Até porque a dita-cuja apagou, para efeitos jurídicos, também os desmandos, e não foram poucos, cometidos pelos fardados.

Proponho a vocês um compromisso com a decência. Nunca mais exaltem em ordens do dia um golpe militar. Vocês querem realmente aplaudir um marco importante para o Brasil? Que tal, então, a partir do ano que vem, incluir no calendário a exaltação da Lei da Anistia e esquecer o golpe? Aí as coisas ficam, a meu ver, no lugar.

E que as pessoas continuem a sonhar com a igualdade e a lutar por ela — se fácil, se difícil, que a sociedade decida. Desde que essa luta se dê nos marcos da democracia e do estado de direito.

E isso, por definição, exclui a história contada a partir da ótica de quem dispõe de tanques. Porque, nesse caso, não se conta uma história, mas se faz uma ameaça.

Ou bem se exalta o golpe ou bem se exalta a anistia.

Ou bem se exalta a democracia ou bem se exalta o golpe.

Algum furo no meu raciocínio, senhores?

Reitero: pelo bem das Forças Armadas, os comandantes militares devem dar início imediato à descolonização do governo. Ou a história não os perdoará. Voltem a servir apenas ao Estado brasileiro.