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Reinaldo Azevedo

De volta a Dilma: Carta proíbe Bolsonaro de pôr "delegado da família" na PF

Alexandre Ramagem, que pode comandar a PF, e Maurício Valeixo, demitido do cargo por Jair Bolsonaro. O presidente não é obrigado a manter o defenestrado, mas pode ser impedido pela Constituição de escolher o amigo da família - Agência Senado e Denis Ferreira/Estadão Conteúdo
Alexandre Ramagem, que pode comandar a PF, e Maurício Valeixo, demitido do cargo por Jair Bolsonaro. O presidente não é obrigado a manter o defenestrado, mas pode ser impedido pela Constituição de escolher o amigo da família Imagem: Agência Senado e Denis Ferreira/Estadão Conteúdo

Colunista do UOL

27/04/2020 07h27

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Vamos tentar pôr um pouco de ordem na confusão. De Zero a dez, qual a possibilidade de a Justiça reverter a demissão de Maurício Valeixo do cargo de diretor-geral da Polícia Federal? Resposta: zero. Qual a possibilidade de a Justiça impedir a nomeação de Alexandre Ramagem para o cargo? Cinco. Dado o critério empregado pelo ministro Gilmar Mendes para impedir a posse de Lula como chefe da Casa Civil de Dilma Roussef em março de 2016, a resposta deveria ser esta: dez! Não custa lembrar: uma ação duplamente ilegal de Sergio Moro, que está no centro da atual crise, concorreu para aquela decisão. Vamos explicar tudo.

O senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP) ingressou com ação popular na 22ª Vara Federal Cível da Seção Judiciária do Distrito Federal com objetivo de devolver Valeixo ao cargo. Duvido que este topasse ainda que fosse possível. Mas não é. O Artigo 84 da Constituição, que traz as atribuições exclusivas do presidente, não inclui, é fato, a nomeação ou demissão do titular da PF, mas a Lei 9.266 sim. A Lei 13.047 lhe acrescentou o Artigo 2º C, que define: "O cargo de Diretor-Geral, nomeado pelo Presidente da República, é privativo de delegado de Polícia Federal integrante da classe especial."

Pouco importa a razão, Bolsonaro não é obrigado por nenhuma determinação legal a manter Valeixo no cargo porque, por óbvio, nunca foi obrigado a nomeá-lo. Já a escolha de Ramagem é coisa bem mais complicada. E, agora sim, é preciso voltar às duas liminares concedidas por Mendes a Mandados de Segurança impetrados, respectivamente, por PPS e PSDB para impedir, então, a posse de Lula. As íntegras das duas decisões estão aqui e aqui.

Vamos lá. O ministro reconheceu, então, que o Artigo 84 da Constituição confere ao presidente autonomia para nomear ministros, mas lembrou: "o ato que visa o preenchimento de tal cargo deve passar pelo crivo dos princípios constitucionais, mais notadamente os da moralidade e da impessoalidade". Estava citando o caput do Artigo 37: "A administração pública direta, indireta ou fundacional, de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade".

ILÍCITOS ATÍPICOS
Mendes lembrou, então, o conceito de "ilícitos atípicos". O que é isso? Ele explica nas duas liminares, citando Manuel Atienza e Juan Ruiz Manero: "Os ilícitos atípicos são ações que, prima facie, estão permitidas por uma regra, mas que, uma vez consideradas todas as circunstâncias, devem considerar-se proibidas". A sua expressão conhecida na doutrina brasileira se revela por meio do "abuso de direito, da fraude à lei e do desvio de finalidade/poder".

Lembro rapidamente: o então juiz Sergio Moro divulgou, de modo ilegal, gravação também ilegal de conversa entre Dilma Rousseff e Luiz Inácio Lula da Silva em que a presidente comunicava ao líder petista que um funcionário iria lhe levar o termo de posse para que fosse usado "em caso de necessidade". Como havia o temor de que Sergio Moro decretasse a qualquer momento a prisão preventiva do ex-presidente, entendeu-se que a antecipação do termo de posse buscava impedir tal ação, razão por que, então, a nomeação não atenderia ao Artigo 37 da Constituição, mas sim a uma tentativa de preservar o petista de uma decisão judicial.

MANIPULAÇÃO DE MORO
Diálogos revelados pelo site The Intercept Brasil e pela Folha revelaram que Moro fez uma divulgação seletiva -- e, pois, política -- daquela conversa. Omitiu outros diálogos de Lula com aliados que deixavam claro que o objetivo da nomeação era tentar recompor a base política de Dilma, o que é legítimo. Erro de Mendes? Ora, ele decidiu segundo o que havia se tornado público. Não tinha como adivinhar que Moro, o Impoluto, havia omitido gravações que contestavam aquela evidência -- ou falsa evidência.

Moro pôs, então, para circular, de modo ilegal, uma inverdade. Mas os fundamentos da decisão de Mendes estão corretos e têm de ser aplicados no caso da nomeação de Alexandre Ramagem. Diálogo trocado via WhatsApp entre o então ministro e Bolsonaro deixam claro que o presidente pede a troca de Valeixo porque deputados que são seus aliados estariam na mira da Polícia Federal. E quem é o homem que poderia, a juízo do presidente, resolver a questão? A reposta está na conversa mantida entre Moro e a deputada Carla Zambelli: Ramagem — que ela chama "Ramage". Há mais: o próprio presidente confessou que quer que a Polícia Federal lhe forneça informações ao arrepio da lei. Disse em seu pronunciamento: "Sempre falei pra ele: 'Moro, não tenho informações da Polícia Federal. Eu tenho que todo dia ter um relatório do que aconteceu, em especial, nas últimas 24 horas, para poder bem decidir o futuro dessa nação."

CONFISSÃO DE BOLSONARO
Mais: no seu pronunciamento destrambelhado, Bolsonaro deixou claro que tem especial interesse em operações da Polícia Federal que dizem respeito à sua própria família -- chegou a confessar que recebeu relatório de operação sigilosa envolvendo o caso Marielle -- e a si mesmo: não se conforma que a PF não tenha ligado Adélio Bispo de Oliveira a uma conspiração política para matá-lo. Há, pois, evidências de que Bolsonaro pretende jogar no lixo o Artigo 37 da Constituição e pretende, com a nomeação de Ramagem, praticar um dos chamados "ilícitos atípicos". No caso, é o mesmo "desvio de finalidade ou poder" que levou Mendes a impedir a nomeação de Lula.

E olhem que não existe agora nenhum ilícito na origem da evidência, como havia na gravação da conversa entre Lula e Dilma, o que não mudava a essência do desvio de finalidade se verdadeiro. Ocorre que, reitere-se, houve manipulação das evidências: Moro omitiu as gravações que contestavam, então, a configuração do tal desvio.

Desta feita, as evidências são todas legais:
- Moro divulgou uma conversa sua no WhatsApp com o presidente e outra com Carla Zambelli;
- o próprio presidente disse querer da PF o que ela não pode, por disposição legal, lhe fornecer;
- Ramagem, está claro, é o nome escolhido para o exercício do desvio de finalidade.

O deputado Marcelo Freixo (PSOL-RJ) e o MBL anunciam que vão apelar à Justiça para impedir a nomeação de Ramagem. Partidos de oposição devem fazer o mesmo. É evidente que acho que tal nomeação, se acontecer, tem de ser obstada com base no Artigo 37 da Constituição. O "desvio de finalidade", um dos ilícitos atípicos, nesse caso, não é uma simples possibilidade nem corre o risco de ser uma manipulação: além da prova, há a confissão involuntária de Bolsonaro.

LIMINAR DE CÁRMEN LÚCIA
Não custa lembrar: a ministra Cármen Lúcia concedeu uma liminar, em janeiro de 2018, que suspendeu a posse da então deputada Cristiane Brasil (PTB-RJ) para o Ministério do Trabalho, no governo Temer. Um grupo de advogados entrou com uma Reclamação no STF alegando que a nomeação feria o princípio da moralidade, previsto no Artigo 37 da Constituição, uma vez que a parlamentar tinha uma condenação da Justiça do Trabalho.

Os fundamentos da decisão de Carmen nada têm a ver com os das liminares de Mendes. Os casos são absolutamente distintos. Mas, como se nota, o Supremo tem entendido que a competência do chefe do Executivo para fazer nomeações que a Constituição ou a lei lhe facultam não está acima dos fundamentos da "moralidade" e da "impessoalidade". Assim, "legalidade, moralidade, impessoalidade e publicidade" jamais se anulam. Eles se completam.

O JUDICIÁRIO E O ESTADO DE DIREITO
Bolsonaro, bolsonaristas, Moro, moristas e gente da mesma laia nunca estiveram preocupados com fundamentação legal. De toda sorte, aplaudiram as duas decisões do passado, independentemente de suas respectivas fundamentações, porque isso lhes era politicamente útil.

Agora, claro!, Bolsonaro apela à lei para reivindicar o seu direito de nomear um delegado de família — da sua família — para a Polícia Federal.

Cabe à Justiça decidir se entende que o presidente está acima da Constituição. Sim, a lei lhe faculta a nomeação, desde que atendido o que dispõe o Artigo 37 da Constituição. E, como resta escancaradamente claro, com provas e admissão por Bolsonaro em boca própria, a indicação de Ramagem viola a Carta.

A depender do andamento, a coisa pode chegar ao Supremo. E por que não é "10" a chance de o tribunal impedir a posse de Ramagem? Depende de quem ficar com a relatoria.

Vamos ver. Que fale o Poder Judiciário, não é? Também a ele cabe dizer até quando e até onde Bolsonaro pode assaltar a Constituição e a institucionalidade. A frase tem sua dose de absurdo, claro! A boa resposta é esta: até nunca e até lugar nenhum.