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Reinaldo Azevedo

Doença do espírito: explode nº de mortos, mas cai apoio a isolamento social

Folha/Datafolha
Imagem: Folha/Datafolha

Colunista do UOL

29/04/2020 07h53

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Escrevi na noite passada um texto apontando certa alienação em relação ao que está em curso e um "dar de ombros" para a tragédia que, ainda que não predominantes, se podem perceber de forma bastante pronunciada no país. O exemplo, é certo, vem de cima. Confrontado com o recorde de mortes, Bolsonaro respondeu ontem com uma de suas grosserias características: "E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê? Eu sou Messias, mas não faço milagre". Nem empatia nem compadecimento. Um aliado seu gargalhou às portas do Alvorada. O ministro da Saúde, Nelson Teich, concedeu uma entrevista coletiva no pior dia para os brasileiros no que respeita à doença com distanciamento relatorial.

O distanciamento social, a insegurança econômica, as orientações desencontradas, a arruaça que emana do poder em Brasília... Tudo isso pode deixar o país também moralmente doente, sem rumo, sem saber o que fazer. Quando visivelmente a doença mudou de patamar, e os corpos já se contam às centenas, estamos nos preparando para sair do isolamento — isolamento que, diga-se, nunca atingiu o nível desejável.

O Datafolha fez uma pesquisa telefônica para saber o que pensa o brasileiro sobre temas relacionados à pandemia. Um marciano, coitado!, que tentasse entender, afinal, o que quer parte considerável da população ficaria absolutamente desorientado, confuso, atrapalhado. Não saberia o que dizer a seus superiores. Foram ouvidas 1.513 pessoas no dia 27. A margem de erro é de três pontos percentuais para mais ou para menos.

Nesta terça, foram 474 os mortos em 24 horas, perfazendo o total de 5.017 vítimas, mais do que a China, com 71.886 infectados. As evidências de subnotificação são dramáticas. Mesmo assim, o apoio ao isolamento social teve uma queda acentuada. Entre 1º e 3 de abril, 60% diziam que também as pessoas fora dos chamados grupos de risco deveriam ficar em casa. Agora, só 52% mantêm essa posição. Antes, 37% pensavam que todos deveriam sair para trabalhar; agora, 46%.

Ainda assim, uma maioria expressiva de 47% acredita que o número de mortos é maior do que se divulga; só 26% dizem ser menor — não tenho como afirmar, mas posso apostar que são os adoradores do "Mito". Por alguma razão insondável, haveria o interesse do próprio Ministério da Saúde em aumentar o número de óbitos. Para 20%, os dados correspondem à realidade.

Caiu de 76% no começo do mês para 67% agora -- mas, ainda assim, bastante alto -- o número dos que acreditam que é preciso manter as pessoas em casa, ainda que isso prejudique a economia. E subiu de 19% para 25% os que dizem que se deve pôr fim ao isolamento, ainda que isso colabore para espalhar o vírus. É inescapável concluir, pois, que há um grupo de pessoas que pensa estas duas coisas ao mesmo tempo:
1: deve-se ficar em casa, ainda que a economia piore;
2: todos devem sair para trabalhar.

Há dados curiosos. O apoio ao isolamento seletivo, apenas das pessoas de grupos de risco, é de 58% entre os que ganham mais de 10 salários mínimos e de 44% entre os que recebem até dois. Mas, ora vejam, são justamente os mais endinheirados que cumprem o distanciamento social: 15% dizem nunca sair de casa, e 56% só quando é inevitável. Corolário: retomar a vida normal é coisa boa para os outros — provavelmente os mais pobres...

O bolsonarismo jamais será uma categoria de pensamento, mas não duvido de que seja uma categoria moral. Entre os que acham seu governo ótimo ou bom, 67% querem a retomada plena do trabalho; só 26% defendem o mesmo entre os que avaliam sua gestão como ruim ou péssima.

Dizem estar totalmente isolados 16% das pessoas, e 53% afirmam sair só quando não podem evitar. Isso daria uma taxa de adesão ao isolamento social de 69%. Obviamente não é o que se percebe Brasil afora. E a doença não se faz de rogada. As cidades que não obedecem ao isolamento ou que dele saíram de modo destrambelhado assistem ao crescimento vertiginoso de doentes.

Síntese das sínteses: no momento mais perigoso e dramático, com o colapso no sistema de saúde a rondar o país — já chegou de modo horripilante a algumas capitais —, cai a adesão ao único método seguro conhecido de combater a doença.