Aras quer sigilo e age como defesa de Bolsonaro; Dilma não teve 12º jogador
Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail
Augusto Aras, procurador-geral da República, não decepciona, não é mesmo? Nem a mim nem a Bolsonaro, ainda que por razões distintas. Manifestando-se no prazo dado por Celso de Mello, relator no Supremo da investigação que apura se o presidente fez uma interferência imprópria na PF, Aras se posicionou contra a liberação da íntegra do vídeo e o fez alguns graus acima da frieza que ficaria bem a alguém no seu posto.
Se José Levi Mello do Amaral Júnior, advogado-geral da União, pede que se libere o conteúdo de toda a reunião, exceção feita às considerações que digam respeito às nações amigas e a falas dos demais membros da reunião, Aras defende que se dê publicidade unicamente às falas do presidente que dizem respeito à Polícia Federal e a órgãos de segurança do governo porque só elas teriam relação com as acusações feitas pelo ex-ministro Sergio Moro. Ou seja: o procurador-geral é ainda mais restritivo do que o advogado-geral, o que não deixa de ser estranho uma vez que a AGU é quem faz a defesa do presidente.
Aras opta por um singularíssimo percurso argumentativo para defender a não divulgação. Começa, ora vejam, sustentando que "a publicidade reafirma e fortalece a democracia; dá razões e meios aos cidadãos para defenderem seus direitos. Por isso, a ampla liberdade de acesso às informações públicas compõe um elenco de princípios e regras muito caros ao Estado democrático de direito positivados na Constituição Federal."
Parece que ele vai pedir a liberação de tudo, certo? Errado! Aí vem o cavalo de pau no argumento: "Ocorre que, paralelamente a isso, a restrição do acesso protege o cidadão em sua intimidade e, por vezes, confere segurança jurídica e mesmo a paz social". O procurador ainda lembra que a "publicidade é a regra, e o sigilo, a exceção". E ele, então, fica com a exceção não com a regra.
Ele próprio lembra: "A jurisprudência desta Suprema Corte consolidou os seguintes critérios para a restrição do acesso: que "(i) haja previsão legal; (ii) destine-se a proteger a intimidade e a segurança nacional; e (iii) seja necessária e proporcional".
Muito bem! Não existe lei determinando o sigilo. Não se cuida em falar de intimidade porque são homens públicos, em espaço público a debater assuntos públicos. Restaria a questão da segurança nacional. Será mesmo?
Aras faz, então, algo estranhíssimo. Atentem para este trecho:
"Ainda que não tenham sido previamente classificadas como sigilosas nos termos da Lei 12.527/2011, boa parte das informações deliberadas naquela reunião do dia 22 de abril de 2020 poderiam, a critério do Presidente, sem exagero ou desvio de finalidade, ser consideradas questões de segurança de Estado, nos termos do art. 232 da referida lei. Assim, estaria satisfeito o primeiro critério jurisprudencial da 'previsão legal' para restrição de acesso."
Como é? Então Aras pede que Mello faça o que Bolsonaro, no uso de suas atribuições, não fez, que é decretar o sigilo da reunião? O procurador-geral se mostra, assim, mais realista do que o próprio rei. Como não pode ser ele próprio a determinar o sigilo, pede que o ministro do Supremo o faça.
O doutor introduz ainda uma outra vertente exótica nas suas considerações:
"A divulgação integral do conteúdo o converteria, de instrumento técnico e legal de busca da reconstrução histórica de fatos, em arsenal de uso político, pré-eleitoral (2022), de instabilidade pública e de proliferação de querelas e de pretexto para investigações genéricas sobre pessoas, falas, opiniões e modos de expressão totalmente diversas do objeto das investigações, de modo a configurar fishing expedition."
"Uso político e pré-eleitoral" em 2020 tendo em vista o pleito de 2022? Dado o contexto, não há como afastar, então, a conclusão de que, segundo o procurador-geral, a eventual divulgação da íntegra da reunião seria eleitoralmente útil aos adversários de Bolsonaro e prejudicial ao presidente.
Ora, quem faz, nesse caso, "fishing expedition" é o procurador-geral, que passa a pescar em águas turvas, atuando como procurador do presidente da República, resguardando seus interesses eleitorais. Eu, por exemplo, nem havia pensado nIsso. A ser assim, porque há eleições a cada quatro anos, inverta-se o fundamento trazido à luz pelo próprio Aras: declare-se que o sigilo é a regra, e a publicidade, a exceção.
Dados os trechos transcritos pelo advogado-geral da União, está claro que Jair Bolsonaro reclamou de todos os órgãos de segurança, incluindo, em sua fala, a Polícia Federal; que anunciou que faria intervenção em todos eles (e, pois, também na Polícia Federal) e que, em dado momento, afirmou: "Já tentei trocar gente da segurança nossa no Rio de Janeiro oficialmente e não consegui. Isso acabou. Eu não vou esperar foder minha família toda de sacanagem, ou amigo meu, porque eu não posso trocar alguém da segurança na ponta da linha que pertence à estrutura". A menos que o GSI faça a segurança de seus amigos, estava falando, sim, sobre a Polícia Federal".
A função do procurador-geral não é pôr palavras na boca do presidente, mas também não é retirar; não é inventar um contexto para a sua fala, mas também não é eliminá-lo a ponto de consagrar o absurdo, como se fosse razoável ficarmos com a interpretação de que, então, o GSI faz a segurança dos amigos do presidente ou de que este ameaçou, em público, demitir o general Augusto Heleno.
Recomendo a Augusto Aras, procurador-geral, que não mais recorra ao processo eleitoral como justificativa para, na coisa pública, fazer a sigilo triunfar sobre a publicidade. Afinal, doutor, como há pleito a cada dois anos, ou estamos em ano eleitoral ou estamos em ano pré-eleitoral, né? A ser assim, o excelentíssimo vai acabar defendendo a tese de que um eleitor desinformado decide com mais propriedade do que um informado.
Querem saber? Sem conhecer o vídeo, acho que José Levi Mello do Amaral Júnior, o advogado-geral, fez bem o seu trabalho. Como membro da AGU, não esperava que adotasse outro procedimento. A defesa de Sergio Moro o acusa de ter omitido passagens importantes, mas também isso é parte do jogo.
Já a peça de Aras pode não ser surpreendente pela escolha — achei que fosse fazer a defesa do sigilo, ainda que seja um pouco constrangedor para ele —, mas surpreende um tantinho pelo tom. O que se tem ali, mesmo sem entrar no mérito da fala do presidente, é uma peça que ficaria bem na pena de um advogado de defesa de Bolsonaro.
Eis aí: o atual presidente tem o que Lula, Dilma e Temer não tiveram, não é mesmo? O procurador-geral como o 12º jogador em campo.
Aras procura fazer um gol de mão para o presidente. Um deles entrou para a história: o primeiro de Maradona nas quartas de final da Copa de 1986 na vitória da Argentina por 2 a 1 contra a Inglaterra. Os argentinos levaram o título. O juiz tunisiano não viu o que o já lendário jogador chamou de "a mão de Deus". Que Celso de Mello enxergue com mais aguda vista.
Uma pergunta: Aras está pensando em se tornar terrivelmente evangélico neste ano, quando Celso de Mello deixa o STF, ou só no próximo, quando sai Marco Aurélio?