Texto contra "fake news" é bom. Ou: Diabo advoga para as Santas Escrituras
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O Senado aprovou por 44 votos a 32 o projeto de lei que busca coibir as "fake news". A proposta é boa. O que havia na versão original e que poderia, eventualmente, se confundir com invasão de privacidade foi eliminado no texto final. As críticas que remanescem são inconsistentes. Há um aspecto, especialmente em relação ao WhatsApp, que está escapando à percepção de boas pessoas e está gerando crítica infundada. E pretendo debatê-lo aqui, reiterando que não há brecha possível para a invasão de privacidade. Essa afirmação é falsa, ainda que pronunciada por gente bem intencionada — e boa intenção, por si, não é critério de verdade.
Há duas exigências que ainda geram debate acalorado, a saber (na síntese do Globo):
Rastreamento de mensagens
Obriga a rede social a rastrear mensagens distribuídas por mais de 5 pessoas em um período de 15 dias, alcançando um mínimo de 1000 pessoas. As plataformas são contra esse ponto e argumentam que a exigência é suscetível a abusos e afetaria também a segurança e criptografia de ponta a ponta.
Conselho
Para acompanhar as medidas previstas na lei, o projeto determina a criação do Conselho de Transparência e Responsabilidade na Internet. Serão 19 conselheiros entre membros do Congresso, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), Conselho Nacional do Ministério Público e representantes da sociedade civil.
Autorregulação
Os provedores de redes sociais e de serviços de mensagem poderão criar instituição de autorregulação. Ela será a responsável por cuidar das regras e procedimentos e será certificada pelo Conselho de Transparência e Responsabilidade na Internet. As plataformas reclamam que esse formato "gera risco evidente de indevida interferência do Poder Legislativo na livre iniciativa e liberdade econômica por meio do Conselho".
VAMOS VER
Deve haver alguma razão -- e até desconfio qual seja -- para o governo combater o texto. Isso significa que o embate será duro na Câmara e que o presidente Jair Bolsonaro deve recorrer ao veto. Este, claro, pode ser derrubado pela vontade de metade mais um dos parlamentares.
O WhatsApp tem sido muito eficiente em espalhar a versão de que o rastreamento fere o direito à privacidade. É mesmo? Por quê? Em primeiro lugar, não se dá a ninguém o direito de escarafunchar o conteúdo. Em segundo lugar, a eventual identificação da origem da informação só se fará por decisão judicial. E, portanto, é preciso que haja ao menos indício de crime.
Goste o WhatsApp ou não — e parece que gosta e foi criado também com esse fim —, ele se transformou num instrumento de difusão de notícias verdadeiras e falsas. Infelizmente, as falsas existem em muito maior número. Não demorou para a bandidagem perceber que havia uma avenida aberta para fraudar a Constituição, que garante a liberdade de expressão, mas veda o anonimato (Inciso IV do Artigo 5º).
Se o WhatsApp se converteu num meio de comunicação de massa — e não apenas num instrumento de relação interpessoal —, como tal tem de ser tratado ao menos na preservação de bens protegidos pela Carta.
Pablo Bello, diretor de Políticas Públicas do WhatsApp para a América Latina, critica esse aspecto do projeto com uma argumentação sedutora, mas que falseia o debate. Afirma:
"Construir uma base de milhões de mensagens, identificando quem interage com quem, quebra um princípio central de privacidade e pode vulnerar direitos humanos fundamentais. No domingo, o mundo celebrou o dia mundial contra a homofobia. Em 70 países, a homossexualidade ainda é crime. Imagine se na Rússia pudessem ter acesso a essas informações."
Comecemos pelo óbvio: a lei está sendo votada para o Brasil, não para a Rússia. De resto, estados autoritários ou tirânicos se impõem, como a gente vê, ao arrepio de plataformas que se querem, então, libertárias. O que não é possível, sr. Bello, é acontecer o contrário: em nome das liberdades, permitir que súcias de fascistoides e autoritários corrompam a democracia.
Há uma distância imensa entre quebra da privacidade e quebra de uma corrente criminosa. É preciso saber a diferença entre crime e liberdade de expressão para que não se venha a confundir a liberdade de expressão com crime.
CHUPETA DE PIROCA
Participei há alguns dias de um debate virtual promovido pelo Observatório Judaico dos Direitos Humanos no Brasil. Uma das debatedoras era Laura Capriglione, do "Jornalistas Livres". Divergimos quase sempre. Não foi diferente ali, mas também com convergências.
Ela lembrou um caso exemplar. Não conheço ninguém, nem ela, do nosso círculo de relações que tenha recebido a mensagem da "chupeta de piroca" que o PT pretenderia impor às criancinhas caso vencesse a eleição. E, no entanto, essa mensagem não é uma lenda urbana, não é uma invenção. Ela circulou. E foi via WhatsApp.
Por que não chegou para mim ou para você que está me lendo? Porque o criminoso que pôs a mentira para circular o fez em grupos específicos, apegados a valores religiosos conservadores, com menos instrução e mais poroso a sandices como essas. Por mais que o WhatsApp se esforce para conter os impulsionamentos de mensagens, sabe que não será eficiente em combater o crime se, ora vejam!, criminosos não forem punidos.
Reitere-se: ninguém vai chegar a um balcão da burocracia estatal para indagar: "Quero saber quem me chamou de feio e bobo". Não haverá como. Se, no entanto, um crime eleitoral como o citado atinge milhares ou milhões de pessoas — e esse é apenas o exemplo mais grotesco —, é preciso que a lei se encarregue de punir o criminoso. E, meu caro Pablo, tem de ser a lei brasileira, não a russa.
Nem a liberdade de expressão nem a privacidade estão sob ameaça. Tenho bons amigos fazendo essa crítica equivocada. Apelam às Santas Escrituras da liberdade para proteger o suposto direito que tem o Hasmodeu fascistoide de manter o seu anonimato e, assim, disseminar o mal. Não é a primeira vez que nós, os defensores da liberdade, contribuímos com aqueles que acabam nos enforcando depois.
Ademais, essa atividade, como qualquer outra, tem de estar sob o guarda-chuva da Constituição, não é mesmo?
O CONSELHO
Corretamente, o texto cria um conselho -- é preciso pensar a sua composição -- para acompanhar as questões sempre novas que o mundo real propõe e que a legislação não pode previamente abraçar.
Como é? "As plataformas reclamam que esse formato "gera risco evidente de indevida interferência do Poder Legislativo na livre iniciativa e liberdade econômica por meio do Conselho"? É mesmo, é?
Bem, diria que a restrição nem errada é. A ser assim, sugiro que se extingam os governos nacionais e se entregue a administração dos países às tais "plataformas"... Em boa parte, convenham, elas já se comportam como governos paralelos.
Sim, Bolsonaro tentará bombardear o texto na Câmara — afinal, ele andou fazendo muitas compras por lá ultimamente. Se não conseguir, vai tentar vetar o rastreamento.
Espero não ver alguns dos meus bons amigos de mãos dadas com Carlucho e com o Gabinete do Ódio...
E, sim, claro!, estou preparado para a hipótese de que até essa gente possa estar eventualmente certa. Mas ainda não é desta vez.
A crítica ao texto, como se diz na minha terra, corresponde a procurar chifre em cabeça de cavalo. Com a ajuda do... chifrudo. A tese é ruim. E a companhia também.
ABAIXO, OUTROS ASPECTOS DO TEXTO
Cadastro
Operadoras são obrigadas a validar o cadastro de quem tem conta de telefone, impedindo o uso de documentos falsos
Banco de dados
Obriga empresas que funcionam no Brasil a cederem acesso a bancos de dados no exterior; hoje, muitas negam esse acesso na Justiça.
Administração pública
Entes da administração pública que anunciarem em sites deverão divulgar em portais de transparência o valor do contrato, os dados da empresa, o conteúdo da campanha e o mecanismo de distribuição do recurso, para evitar anúncios em sites do conteúdo considerado falso ou inadequado
Cancelamento de contas
Quando um número for cancelado por uma operadora de telefone, os serviços de mensagens serão obrigados a cancelar a conta correspondente.
Exclusão de conteúdo
A rede social deve disponibilizar contraditório e direito de defesa ao usuário caso uma postagem seja considerada inadequada. Postagens podem ser apagadas imediatamente apenas em casos graves, como no caso de pornografia infantil, conteúdo enganoso ou incitação à violência.
Multa
A empresa que desrespeitar a lei pode sofrer multa de até 10% do faturamento do grupo econômico no Brasil no seu último exercício.