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Reinaldo Azevedo

Estudo evidencia que Lava Jato foi plataforma ideológica da extrema direita

O professor Fabio de Sa e Silva, da Universidade de Oklahoma, que evidencia o conteúdo autoritário da Lava Jato. À direita, Sergio Moro e Deltan Dallagnol, que ajudaram a criar a plataforma da extrema direita  - Reprodução; Lula Marques/PT; Tomaz Silva/Agência Brasil
O professor Fabio de Sa e Silva, da Universidade de Oklahoma, que evidencia o conteúdo autoritário da Lava Jato. À direita, Sergio Moro e Deltan Dallagnol, que ajudaram a criar a plataforma da extrema direita Imagem: Reprodução; Lula Marques/PT; Tomaz Silva/Agência Brasil

Colunista do UOL

26/10/2020 07h31

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Ontem, no Twitter, escrevi:
"FATOS: Em entrevista à Deutsche Welle, Fabio de Sa e Silva -- da Universidade de Oklahoma -- diz que Lava Jato foi plataforma ideológica da extrema direita. Trato disso desde 2014, ano de criação da dita-cuja. Paguei um preço alto, mas a verdade se escancara".

Não tardou, claro!, para que aparecessem tontos de extrema direita e de esquerda para exercitar mentiras convenientes. Uns querem dizer que só passei a me importar com o tema quando a força-tarefa chegou ao PSDB. Há quem tenha (des)estruturado seu miolo mole na pressuposição de que eu seja tucano... Para outro, só depois da Vaza Jato eu teria passado a apontar os descaminhos da força-operação. Esse, então, nem errado consegue ser, coitado!

O próprio Sa e Silva teve a gentileza de responder no Twitter:
"Obrigado, @reinaldoazevedo. De fato, você foi uma voz dissonante na imprensa desde o início. Deixo aqui o link para o estudo; agradeceria contar com sua leitura e crítica".

Que a academia venha a fazer aquilo que, até agora, infelizmente, a imprensa não fez — e, quando acontece, não é sem resistência ou reticência: apontar a essência autoritária da Lava Jato. A justa indignação da sociedade com um sistema corrupto conferiu a procuradores e juízes a licença para atropelar a lei, o devido processo legal e o estado de direito. Um dos desdobramentos deletérios tem nome e sobrenome: Jair Messias Bolsonaro.

O professor analisou 194 entrevistas concedidas por membros da força-tarefa e pelo então juiz Sergio Moro. E encontrou uma espécie de padrão: o inconformismo com as regras do jogo que organizam uma sociedade democrática. Transcrevo em azul trechos da entrevista de Sa e Silva. Volto depois.

ILIBERALISMO
Muita gente entendia esses promotores e juízes como agentes do liberalismo político, que estavam tornando o Brasil um país com mais accountability e transparência. Mas, na minha pesquisa, noto que eles articulam uma visão sobre a ação anticorrupção e o Estado de direito conflitiva com o liberalismo político. Eles têm uma visão iliberal.

É uma categoria que se tornou popular nos últimos tempos para descrever figuras que, uma vez no poder, começam a minar as condições democráticas que permitiram a sua própria eleição. Como o que [Nicolás] Maduro fez na Venezuela, aprovando novas Constituições e trocando a composição da Suprema Corte. Ou, mais recentemente, como [Donald] Trump vem aparelhando o Departamento de Justiça dos Estados Unidos.

É minar as instituições e regras que garantem a limitação do seu poder. Porque a democracia liberal é a combinação entre a possibilidade de elegermos alguém que nos governa, mas também a certeza de que essa pessoa não irá abusar do poder que lhe foi conferido.

INIMIGOS DO POVO
Embora no começo da força-tarefa houvesse um argumento de que a Lava Jato foi possibilitada pelo direito, depois o direito passa a ser um obstáculo que precisa ser denunciado. Vem a campanha das "Dez medidas [contra a corrupção]" capitaneada pelo Deltan [Dallagnol] e a defesa de reformas para ampliar o poder dos próprios agentes que conduzem a iniciativa anticorrupção.

Quando surge uma resistência de setores da sociedade e do Congresso a essas reformas, há um procedimento de denúncia daqueles que resistem, como sendo inimigos do povo que querem que a corrupção reine. Usando uma linguagem alarmista, eles constroem uma oposição entre o povo e as elites, que desejariam perpetuar uma situação de corrupção endêmica.

Por fim, quando o obstáculo do direito se coloca de maneira frontal ao que a Lava Jato está fazendo, não apenas se contorna o direito, como busca-se justificar o contorno como algo necessário para proteger o povo e a sociedade. Isso acontece no episódio da liberação das gravações do Lula pelo Moro e em outros eventos.

POPULISMO
No conceito de populismo há essa ideia de uma oposição entre o povo e os "inimigos" do povo, sendo que o líder se coloca como alguém capaz de proteger o povo. Isso sem dúvida está muito presente na Lava Jato, é só olhar a forma como os agentes da força-tarefa eram representados, e o Moro como um super-herói. Não foi só uma cobertura acrítica de parte da mídia que permitiu que eles chegassem lá, eles trabalharam conscientemente para se posicionaram como esses protetores
.

AMEAÇA E DOENÇA COMO METÁFORA
Essa parte foi algo que me surpreendeu na análise, é uma linguagem que se repete e se expande. Começa com a ideia do monstro, de que a corrupção é um monstro. Depois, que a corrupção é um câncer. E que o câncer está em metástase. E precisa de um tratamento. E o tratamento são as "Dez medidas".

Uma das maneiras pelas quais o poder do [Vladimir] Putin, uma liderança iliberal, se afirmou foi construindo a necessidade de proteger a Rússia da União Europeia, que seria um inimigo, uma fonte de promiscuidade e práticas culturais contrárias à identidade nacional russa. Tinha a ideia de que a Rússia era um corpo virgem, puro, sendo vilipendiado por uma força externa maligna. É um pouco o tom do argumento da força-tarefa no Brasil.

PERSEGUIÇÃO DO INIMIGO
Tomamos como pressuposto que a ação dos integrantes da Lava Jato era voltada à promoção da transparência e da responsabilidade. Mas, se analisarmos o repertório cultural que eles foram construindo, vemos que isso dá margem para outras coisas, que são contrárias aos ideais de transparência e responsabilidade. Estão muito mais próximas da ideia de identificação e perseguição do inimigo do que propriamente da contenção de arbitrariedade no exercício do poder, que é a chave do liberalismo. É uma gramática política que pode ser invertida e mobilizada contra os ideais do liberalismo.

LAVA JATO COMO FRUTO, NÃO COMO INTENÇÃO
Existe esse debate, se a Lava Jato deve ser considerada culpada de tudo o que acontece no Brasil desde 2016 e se a força-tarefa tinha ou não a intenção de fragilizar a democracia no país. Mas, como disse no início, não estou interessado nas intenções, estou mais interessado nos efeitos gerados a partir da interação entre aquilo que eles fizeram com aquilo que outros fizeram, circunscrevendo a análise a esse campo cultural. Nesse sentido, é difícil negar que a luta anticorrupção serviu como plataforma para a extrema direita no Brasil. Se foi construída como esse fim, ou se foi instrumentalizada, deixo para outros responderem.

IMPORTANTE
A iniciativa do professor Sa e Silva é mais importante do que parece. Junto com o negacionismo homicida de Bolsonaro veio uma acusação antes mesmo que surgissem os primeiros indícios de roubalheira na área de Saúde em tempos de pandemia. O presidente sugeriu que haveria governadores e outros políticos interessados em superestimar os perigos do coronavírus para... assaltar os cofres públicos.

Sim, é verdade! Em matéria de corrupção, no Brasil, estamos como uma das máximas da minha Dois Córregos: "A cada enxadada, uma minhoca". Assim, é fundamental que se combatam as práticas corruptas, é claro! E é um fato que existem evidências de roubalheira em vários lugares.

Mas, ora vejam!, a caça à corrupção já afastou dois governadores de Estado que se elegeram com o apoio de Bolsonaro e se insurgiram contra ele.

O afastamento de Wilson Witzel, determinado pelo STJ, foi escandalosamente ilegal. Não há lei que o ampare — ou então me digam qual é. A decisão da Assembleia é legal. Àquela altura, convenham, havia pouco a fazer.

Carlos Moisés, de Santa Catarina, foi afastado em razão de equiparação salarial concedida a procuradores, considerada irregular. Mas é claro que estava sob bombardeio também por causa da compra de respiradores, o que ensejou outros pedidos de impeachment.

Nos dois casos, não houve tempo de articular a defesa. A "caça aos corruptos", como valor absoluto, tem ignorado o devido processo legal e o direito de defesa. E isso, sem dúvida, é legado da Lava Jato (que está na raiz da ação contra Witzel, diga-se). E, como se nota, fortalece o autoritário de plantão: Bolsonaro — o mesmo que só chegou ao topo em razão da operação.

Precisamos retirar dos escombros o devido processo legal e o direito de defesa. Sem eles, a corrupção continua, mas aí promovida ou manipulada por candidatos a tirano. E isso também não é ilação, como se vê, mas um fato.