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Reinaldo Azevedo

ANÁLISE

Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.

Lei Silveira: pretextando proteger mandatos, Lira comanda PEC da impunidade

Arthur Lira, presidente da Câmara. Uma coisa é proteger o mandato; outra, distinta, é tentar instaurar o vale-tudo - Wallace Martins/Futura Press/Estadão Conteúdo
Arthur Lira, presidente da Câmara. Uma coisa é proteger o mandato; outra, distinta, é tentar instaurar o vale-tudo Imagem: Wallace Martins/Futura Press/Estadão Conteúdo

Colunista do UOL

25/02/2021 08h07

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Arthur Lira (Progressistas-AL), presidente da Câmara, resolveu patrocinar uma PEC de suposta proteção ao mandato parlamentar — o que seria, em si, meritório —, mas que se transforma numa soma de extravagâncias que garante a impunidade a trogloditas como o tal Daniel Silveira. Bem, de saída, cumpre notar: caso a aberração siga adiante, alguém vai se lembrar de recorrer ao Supremo com uma ADI (Ação Direta de Inconstitucionalidade). Da forma como a coisa vem ao mundo, instaurar-se-ia o vale-tudo. Ah, sim! O texto tem a assinatura de um tucano: Celso Sabino (PA).

Como regra, a PEC torna os parlamentares pessoas praticamente fora do alcance do Judiciário. A estrovenga é inaceitável. Convém lembrar que, de acordo com a Constituição, a prisão em flagrante por crime inafiançável tem de ser submetida à Câmara ou ao Senado. Portanto, é a Casa que decide a sorte do deputado ou do senador.

O poder das respectivas Casas hoje é tal que os parágrafos 3º e 4º do Artigo 53 da Constituição dão a elas, pelo voto da maioria, até mesmo a competência para sustar o andamento de uma denúncia. Mas vamos ao texto.

Comecemos pelo mais polêmico, que deixaria o tal Silveira livre, leve e solto, ainda que desse um peteleco na orelha de um ministro do Supremo.

IMUNIDADE E JUSTIÇA
Não haveria declaração ou manifestação que pudesse levar um parlamentar à Justiça. Ele responderia, no máximo, a um processo disciplinar no Conselho de Ética, que pode resultar na cassação do mandato. Mas não haveria responsabilização civil ou criminal, pouco importando o que dissesse.

É um troço inconstitucional. Transforma a imunidade num valor absoluto. Os únicos que poderiam impor limites aos parlamentares seriam os próprios pares. Nessa formulação, não teríamos Três Poderes independentes e harmônicos. Independentes, sim, mas deputados à moda Silveira poderiam abrir uma guerra permanente contra o Supremo, achincalhar os ministros, vilipendiá-los — e a quaisquer outras pessoas, entidades, órgãos...

Não sei se deputados ou senadores serão doidos o suficiente para aprovar esse troço. A questão: e se isso valesse para todos os Poderes da República, além do Ministério Público, hein? A desordem se instauraria. Poderes são independentes, não soberanos.

FLAGRANTE
Os parlamentares só poderiam ser presos em flagrante pelos crimes inafiançáveis previstos na Constituição: racismo, tortura, tráfico de drogas ilícitas, terrorismo, crimes hediondos e ação de grupos armados. E pronto! Silveira foi preso com base em crime contra a ordem pública, previsto na Lei de Segurança Nacional. Nesse caso, nada de flagrante. E haveria ainda a possibilidade de que fosse solto.

PRISÃO E CUSTÓDIA
Hoje, um parlamentar pode ser preso por determinação do Supremo e é recolhido imediatamente à PF. A prisão só é mantida com o apoio da maioria absoluta dos parlamentares, o que já é uma interpretação benevolente. O bom senso indicaria que teria de haver maioria absoluta para derrubar a prisão, não o contrário. Logo, também nesse caso, o poder está com os parlamentares.

Mas Sabino e Lira acham pouco. Na estrovenga em curso, o parlamentar
- ficaria sob a custódia da Casa a que pertence até o plenário votar;
- se a prisão fosse mantida, haveria uma audiência de custódia, e caberia ao juiz deixar o preso em liberdade provisória, a menos que haja manifestação do Ministério Público pedindo a preventiva ou alguma medida cautelar

MEDIDA CAUTELAR
Qualquer medida cautelar contra parlamentares que afete o exercício do mandato, segundo jurisprudência do Supremo, tem de contar com a aprovação da maioria dos membros da Casa. Vale dizer: deputados e senadores já têm hoje o poder de sustar decisões judiciais. A PEC, no entanto, veda expressamente o afastamento.

LEI DA FICHA LIMPA
Só haveria inelegibilidade com a condenação confirmada por um colegiado -- garantido o duplo grau de jurisdição. Pergunta-se: seriam elegíveis os que renunciassem ao mandato para não ser cassados? E mesmo aqueles que forem cassados? Uma pessoa condenada em primeira instância poderia não recorrer para continuar elegível se achasse que haveria o risco de ter confirmada a condenação.

FORO ESPECIAL
Jurisprudência do Supremo já hoje garante o foro especial apenas àqueles que forem acusados de crimes no exercício do mandato e em razão deste. Apenas se adaptaria o texto constitucional ao que já está em prática -- o que, diga-se, em nosso país doidão, contraria a Constituição. Nesse caso, eu discordo do que fez o Supremo.

CONCORDO COM UMA ÚNICA MUDANÇA, MAS...
Como crimes cometidos antes do exercício do mandato ou que com eles não tenha relação já correm hoje na primeira instância, qualquer juiz pode decretar mandado de busca e apreensão nas dependências da Câmara e do Senado e nas respetivas casas dos parlamentares.

A PEC estabelece que só ministro do STF poderia autorizar a ação seja nas dependências de Câmara e Senado, seja nas respectivas casas dos parlamentares. A medida teria de ser acompanhada pela Polícia Legislativa, e tudo o que se recolhesse ficaria sob a sua guarda até que o pleno do tribunal se manifestasse.

Não gosto da ideia de juízes Brasil afora dando autorização para ações no Congresso. Aliás, acho um erro mandar para a primeira instância os processos que envolvem deputados e senadores. Afinal, a paróquia, em regra, tende a ser mais favorável ao investigado. De todo modo, essa proposta não é coerente com aquela que constitucionaliza que os parlamentares federais podem ser julgados pela primeira instância em crimes anteriores ao mandato ou que não tenham relação com ele.

ENCERRO
Se a PEC for aprovada como está, o que duvido, caberá ao Supremo pôr as coisas no eixo. A PEC, nos termos em que vem à luz, garantirá a impunidade a chicaneiros interessados em atacar a democracia e o estado de direito.

Não pode ser aprovada como está.

Se for, restará ao Supremo submetê-la ao crivo constitucional.