Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.
Kássio Conká ignora os autos e, pasmem!, pede direito de defesa para Moro!
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O voto de Nunes Marques, o Kássio Conká, no caso da suspeição de Sergio Moro é das coisas mais lastimáveis que já se ouviram no Supremo, ainda que em ambiente virtual. E está esclarecido o sentido nada secreto do esparramo promovido pelo ínclito Edson Fachin antes que esse caso fosse a julgamento: ao lançar no mercado político e eleitoral um Lula elegível, criou-se um fantasma que assustou Jair Bolsonaro, Lava Jato e um pedaço importante — decadente, mas ainda poderoso — da imprensa. E todos se juntaram para esconjurar o demônio. E as pressões recaíram sobre... Kássio Conká.
É impressionante que seu voto tenha ignorado os elementos fáticos da suspeição de Moro, que ele não examinou:
1- a agressão ao princípio do juiz natural, atraindo uma competência que não era sua;
2- o escândalo da condução coercitiva de Lula;
3- interceptações telefônicas ilegais que atingiram os advogados de Lula;
4- ação do juiz, que estava de férias, para impedir execução de habeas corpus de soltura;
5- adiamento de depoimento de Lula em razão do calendário eleitoral;
6- manipulação da opinião pública por ocasião da divulgação da conversa entre a então presidente Dilma Rousseff e Lula.
Kassio Conká se limitou a examinar um único elemento: as conversas espúrias, absurdas, inaceitáveis, havidas entre o juiz Sergio Moro e Deltan Dallagnol e entre os procuradores. Deu um triplo salto carpado argumentativo ao lembrar o princípio constitucional de que provas ilícitas não são admitidas no processo.
De fato, não são admitidas para condenar ou para levar alguém à barra dos tribunais. Mas são universalmente aceitas nas democracias quando favorecem o réu. E, nesse ponto, aparece o truque de Conká: ele transformou Moro naquilo que ele não era ali, uma espécie de réu que estivesse sem direito de defesa, apenas submetido à acusação.
Assim, tratou as provas ilegais — o hackeamento — como se fossem elementos que a acusação estivesse usando contra o réu Sergio Moro. Ocorre que o réu na ação é Lula, não Moro. E quem pediu a suspeição, por óbvio, foi a defesa. Ademais, os advogados do ex-presidente apelaram ao conteúdo do hackeamento apenas como elemento ilustrativo, é bom deixar claro. Há os seis elementos eloquentes que listo acima. Evidentes. Inquestionáveis.
Mas quê...
Conká se limitou a dizer que ou o juiz tem uma relação de amizade ou inimizade tão íntima como pública com o réu, ou não existe suspeição possível. Mais: fez a apologia do solipsismo, do subjetivismo mais extremo. Seu voto ainda virá a público e farei questão de analisá-lo. Mas lá está escrito, ainda que com outras palavras: não havendo a tal intimidade, então tudo é permitido. Porque, afinal, cada juiz tem seu jeito de ver o mundo.
Saibam os brasileiros: para o mais recente ministro do Supremo, a única baliza de um juiz há de ser a sua própria subjetividade. Fachin deve estar satisfeito: "Funcionou!"
Como o voto de Kassio Conká aludiu, ainda que indiretamente, ao dado por Gilmar Mendes, o ministro fez picadinho do trololó do seu colega, inclusive na questão técnica. O homem indicado por Bolsonaro resolveu questionar a jurisprudência da Corte sobre o poder que tem um habeas corpus de determinar a suspeição — e daí nasceu a sua tese esdrúxula de que Moro estava tendo cerceado o seu... direito de defesa.
Enquanto escrevo, Carmen Lúcia ainda não falou. Ela já votou contra a suspeição. Mas vai se pronunciar novamente. Vamos ver.
A triunfar o resultado por 3 a 2 contra a suspeição, está admitido o baguncismo no processo legal. Segundo Kássio Conká, as regras que pautam a relação entre órgão acusador e juiz são mero bordado retórico. O magistrado faz o que bem entende, e ninguém tem nada com isso.