Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.
Justificam a queima de homens e acham barbaridade que se queimem estátuas
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A seletividade moral é um dos apanágios dos canalhas. É um dos critérios que emprego para identificar um vigarista: ele costuma se indignar com algumas ocorrências que até podem ser essencialmente erradas, ainda que um tanto irrelevantes, mas se calar diante de uma monstruosidade, ou até justificá-la, se isso estiver de acordo com suas escolhas ideológicas — ou, então, servir para proteger a si mesmo e a seus amigos.
Vejam o caso do incêndio à estátua de Borba Gato. Já escrevi o suficiente aqui e no Twitter. É uma burrice de várias maneiras, distintas e combinadas. Não vai aqui uma hierarquia de fatores. Todos convivem com igual importância:
1: é contraproducente porque ajuda os inimigos da causa contra a qual se pratica o incêndio;
2: traduz uma concepção de história que, se triunfante, instauraria o presente eterno, de sorte que seria preciso, a cada pouco, reescrever a história segundo os valores triunfantes da hora, queimando o que veio antes;
3: dá mais valor à reparação de corte ideológico -- e pois, com viés necessariamente político e temporal -- do que à criação de políticas públicas que corrijam injustiças históricas, o que necessariamente requer pactuação com várias correntes de opinião da sociedade;
4: submete a história a uma espécie de tribunal que ignora circunstâncias próprias de um tempo. História se ensina, não se calcina. Ou ainda se vai justificar a destruição dos Budas de Bamiã, no Afeganistão;
5: também a preservação de monumentos está submetida à ideia de proporcionalidade e temporalidade, a exemplo de qualquer proposição que diga respeito a cultura e valores. Uma apreciação meramente judiciosa, segundo os valores da democracia contemporânea, não explica o Império Romano. E seria preciso destruir as ruínas do Coliseu. Só vai produzir obscurantismo. Já o nazismo pode ser submetido ao filtro da democracia contemporânea. Ignorar esses valores ao de acercar do que se deu na Alemanha no século passado corresponde a flertar com o mal absoluto.
Feitas tais considerações, vamos adiante.
Chega a ser asquerosamente fascinante — aquele espanto cheio de nojo — que alguns lixos morais que andam por aí, muitos deles a fazer alguma coisa que pretendem ser jornalismo, mas que não é, lancem palavras de ordem cheias de indignação com o incêndio à estátua de Borba Gato.
Mas, claro, acham muito natural que a deputada Beatriz von Storch, do partido Alternativa para a Alemanha, desfile por aqui e se reúna com deputados como Eduardo Bolsonaro (SP) e Bia Kicis (DF), ambos do PSL, e com o próprio presidente Jair Bolsonaro.
Aí pode. Beatrix é neta de Lutz Graf Schwerin von Krosigk, o mais longevo dos ministros de Hitler (Finanças). Tão convicto, já destaquei no programa O É da Coisa, que foi um dos líderes de uma tentativa de criação de um enclave nazista no Norte da Alemanha, mesmo depois da vitória dos Aliados: a República de Flensburg. Continuou à frente das Finanças e seu dizia seu chanceler.
Filhos não podem pagar pelos erros dos pais, ou os netos, pelos dos avós. A menos que sejam seus beneficiários ou continuadores conscientes e determinados. Como é o caso de Beatrix. O Alternativa para a Alemanha parecia, de início, uma dissidência um tantinho mais conservadora da direita democrática alemã, em particular da CDU (União Democrata-Cristã), partido de Angela Merkel. Aos poucos, foi se convertendo naquilo que é hoje: um valhacouto de todos os reacionarismos, incluindo grupos abertamente neonazistas.
É, sim, parte da sandice ideológica desses tempos. Embora congregue correntes antissemitas, dialoga, no entanto, com o sionismo de extrema direita, e usa, então, essa interlocução para tentar esconder a sua ascendência — que, nesse caso, não é só histórica: é familiar também. E, claro, as correntes do sionismo que consideram que essas pessoas são suas interlocutoras boas coisas não são. Quando menos, tripudiam sobre a memória de milhões de vítimas do Holocausto judeu em nome do pragmatismo. Há de haver uma diferença entre pragmatismo e amoralidade.
Bolsonaro e o bolsonarismo são como o czar naturalista do poema "Anedota Búlgara", de Carlos Drummond de Andrade:
Era uma vez um czar naturalista
que caçava homens.
Quando lhe disseram que também se caçam borboletas e andorinhas,
ficou muito espantado
e achou uma barbaridade