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Bolsonaro inventa acordo com Moraes para continuar com pregação golpista
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O doido não clínico mais perigoso para si mesmo e para os outros é o que acredita nas próprias fantasias. É o caso de Jair Bolsonaro. Nesta segunda, em conversa com jornalistas, o presidente afirmou que fez, sim, um acordo com o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo, e que este não cumpriu a sua parte, a saber: a extinção do inquérito das "fake news". Será mesmo? Vamos ver.
Bolsonaro convocara para o dia 7 de setembro do ano passado o Dia D do golpe. Pouco importa saber o que tinha em mente — coisa boa não era —, o fato é que, no dia 8, restava um país a governar. Em vez de desfilar liderando tropas, o que ele tinha pela frente era o que sempre o apavorou: o Brasil com todos os seus problemas. Ele tem procurado fugir de suas tarefas como o diabo da cruz desde o dia 1º de janeiro de 2019.
Tudo estava, na verdade, pior no que no dia anterior porque a tensão se elevara no Congresso e no Judiciário. De resto, os tais "mercados", sempre tão confiantes em Paulo Guedes, haviam começado a pôr preço nas instabilidades provocadas pelo presidente. Demorou um tanto, mas a ficha caiu.
Deprimido, confrontado, mais uma vez, com as tarefas que o cargo de presidente lhe impõe, telefonou para o ex-presidente Michel Temer pedindo a sua intermediação numa conversa com Moraes. O ministro, por óbvio, aceitou o papo. A rigor, convenham, nem seria necessária a ação de Temer. Bastava que o próprio Bolsonaro mobilizasse alguém do seu governo para fazer o contato. Mas quem teria envergadura para tanto?
Não custa lembrar o que disse o Napoleão de si mesmo naquele dia 7 de setembro, em São Paulo:
"Dizer a vocês que, qualquer decisão do senhor Alexandre de Moraes, este presidente não mais cumprirá. A paciência do nosso povo já se esgotou. Ele tem tempo ainda de pedir o seu boné e ir cuidar da sua vida. Ele, para nós, não existe mais".
Como Bolsonaro é Bolsonaro, resolveu apimentar um pouco mais a maluquice e emendou com um recado a Luiz Fux, presidente do STF:
"Ou o chefe desse Poder enquadra o seu [Alexandre de Moraes] ou esse Poder pode sofrer aquilo que nós não queremos".
Bem, o passo seguinte, obviamente, seria liderar o autogolpe. Ou voltar atrás. A partir do dia 8, restava a ele começar a descumprir decisões judiciais, colocando-se como juiz dos juízes, ou recuar. E tinha uma de duas saídas para manter a palavra: liderar a quartelada — e ele sonha com isso noite e dia (a única coisa que não quer é governar) — ou tentar arrastar consigo o Congresso Nacional num movimento de desordem generalizada. E não havia como fazer nem uma coisa nem outra.
A CARTA
Abúlico, solicitou, então, a intervenção de Temer. E se deu a conversa com Alexandre de Moraes. No dia 9, veio a público uma carta, parcialmente redigida pelo ex-presidente, em que se lia (segue conforme o original):
Declaração à Nação
No instante em que o país se encontra dividido entre instituições é meu dever, como Presidente da República, vir a público para dizer:
1. Nunca tive nenhuma intenção de agredir quaisquer dos Poderes. A harmonia entre eles não é vontade minha, mas determinação constitucional que todos, sem exceção, devem respeitar.
2. Sei que boa parte dessas divergências decorrem de conflitos de entendimento acerca das decisões adotadas pelo Ministro Alexandre de Moraes no âmbito do inquérito das fake news.
3. Mas na vida pública as pessoas que exercem o poder, não têm o direito de "esticar a corda", a ponto de prejudicar a vida dos brasileiros e sua economia.
4. Por isso quero declarar que minhas palavras, por vezes contundentes, decorreram do calor do momento e dos embates que sempre visaram o bem comum.
5. Em que pesem suas qualidades como jurista e professor, existem naturais divergências em algumas decisões do Ministro Alexandre de Moraes.
6. Sendo assim, essas questões devem ser resolvidas por medidas judiciais que serão tomadas de forma a assegurar a observância dos direitos e garantias fundamentais previsto no Art 5º da Constituição Federal.
7. Reitero meu respeito pelas instituições da República, forças motoras que ajudam a governar o país.
8. Democracia é isso: Executivo, Legislativo e Judiciário trabalhando juntos em favor do povo e todos respeitando a Constituição.
9. Sempre estive disposto a manter diálogo permanente com os demais Poderes pela manutenção da harmonia e independência entre eles.
10. Finalmente, quero registrar e agradecer o extraordinário apoio do povo brasileiro, com quem alinho meus princípios e valores, e conduzo os destinos do nosso Brasil.
DEUS, PÁTRIA, FAMÍLIA
Jair Bolsonaro
Presidente da República federativa do Brasil
É evidente que o ser que falava na carta do dia 9 não parecia o mesmo que discursara no dia 7. Ocorre que Bolsonaro promoveu os seus atos golpistas, mas não tinha dia seguinte, a não ser a sensação, que se espalhou pelo Congresso, incluindo parte considerável do Centrão, de que não dava para sustentar sua loucura. Nota: De lá para cá, o ambiente institucional se deteriorou ainda mais.
Assim que a declaração veio a público, estabeleceu-se na imprensa uma corrida para ver quem chegava primeiro à suposta concessão feita por Moraes. Afinal, na mais vulgar e absurda das leituras, se Bolsonaro havia cedido, parecia evidente que o ministro fizera o mesmo. O raciocínio, singelo e estúpido, ignorava o fato de que, entre o presidente e o ministro do Supremo, só um estava fora da lei.
Releiam a carta de Bolsonaro. Ele estava dizendo — e o impressionante é que isso fosse necessário — que, doravante, seria um súdito da Constituição. Os prudentes, a exemplo deste escriba, não levaram aquilo a sério e iniciaram contagem regressiva para que, mais uma vez, roesse a corda e voltasse à sua militância subversiva. Ele não costuma cumprir a palavra empenhada.
Há uma semana, em entrevista ao SBT, Bolsonaro afirmou que havia combinado "certas coisas" com Moraes para assinar aquela declaração que o ministro não havia cumprido sua parte. No mesmo dia, Temer veio a público para negar que algo semelhante houvesse ocorrido. Bolsonaro, note-se, já se protegia de uma pergunta óbvia: "Pode provar o que disse?". Afirmou ele na tal entrevista:
"Estava eu, Michel Temer, um telefone celular na minha frente. Ligamos para o Alexandre de Moraes, conversamos três vezes com ele. Combinamos certas coisas para assinar aquela carta. Ele não cumpriu nenhum dos itens que combinei com ele. Logicamente, eu não gravei essa conversa, questão de ética, jamais faria isso".
Bolsonaro pode promover atos contra o Judiciário, anunciar que não vai mais cumprir decisões da Justiça e ameaçar as instituições com golpe de Estado. Mas gravar uma conversa? Ah, isso jamais... É muito "ético" para isso.
"EU ME DESCAPITALIZEI"
Nesta segunda, ele voltou à ladainha. E não esconde a disposição de alimentar seus radicais:
"Eu assinei a carta. Eu me descapitalizei politicamente. Levei pancada para caramba em troca de um cumprimento do outro lado da linha, coisa simples, até sobre esse inquérito que não tinha cabimento".
Indagado se o suposto acordo envolvia o inquérito das "fake news", respondeu:
"Envolvia, sim. Um ou dois meses, e [Alexandre] ia botar um ponto final. Lamentavelmente, do outro lado não veio nada."
Vejam aí a confissão do presidente: atacar as instituições, para ele, é uma questão de "capital político". De fato, alguns dos fascistoides que o seguem ficaram muito decepcionados naquele dia 9. Afinal, para eles, um presidente que segue a Constituição é um frouxo.
Bolsonaro não se dá conta de que um acordo como esse implicaria uma penca de crimes — além daqueles que ele já cometeu no dia 7 de setembro e nos dias anteriores e posteriores.
Na condição de presidente da República, estaria fazendo uma espécie de chantagem contra um membro do Supremo, tentando impedir o livre exercício do Judiciário:
"Faça a minha vontade; ponha fim a esse inquérito, e eu deixarei de fazer a minha pregação contra o tribunal."
Da mesma sorte, Moraes estaria subordinando a sua independência de juiz aos chiliques golpistas do presidente, como se, de fato, estivesse numa cruzada pessoal contra o mandatário e precisasse ser coagido pelo comportamento de um arruaceiro.
É evidente que isso não aconteceu. Não descarto que Bolsonaro possa ter feito tal solicitação, com sua sintaxe e vocabulário sempre muito peculiares, e que o ministro tenha ouvido a conversa e ignorado o assédio, evitando, assim, botar mais lenha na fogueira. Fato: Moraes jamais deixou de fazer o que tinha de ser feito depois daquela conversa.
O presidente citou ainda o caso do tal Zé Trovão, que se diz caminhoneiro:
"Até tratamos sobre o [Zé] Trovão. Tínhamos o risco do Trovão voltar para cá [ele estava foragido], ser preso, e o Brasil parar. Como vamos tratar o caso do Trovão. Foi discutido ali. 'Eu vou tratar dessa maneira.' E nada foi cumprido, nada, zero".
Não sei com que tipo de ministro do Supremo Bolsonaro está acostumado a lidar — quer dizer: eu sei —, mas pensem aí um pouco: será que Moraes, com a experiência que tem, inclusive na área de segurança pública, faria um acordo dessa natureza com o presidente, acertando os termos por telefone e com testemunha? Os inimigos de Moraes dizem muita coisa ruim a seu respeito — afinal, estão no seu papel de... "inimigos". Mas nem eles dizem que é burro.
SEM TRÉGUA
Bolsonaro teve de recuar porque acelerou demais os seus planos golpistas e percebeu que não tinha forças para levá-los adiante. A trégua durou três meses. No dia 8 de dezembro do ano passado, em entrevista a um jornal do Paraná, um aliado seu, voltou a atacar o ministro.
Estava especialmente indignado porque o magistrado havia atendido a uma solicitação da CPI e aberto, no dia 3 daquele mês, novo inquérito para investigar suas afirmações que associavam as vacinas contra a Covid ao risco de contrair HIV. Bolsonaro costuma dizer que "fake news" não é tipo penal e acha que uma mentira com essa gravidade, mesmo quando contada por um presidente da República, é exercício do que ele chama "nossa liberdade". Ah, sim: na sexta passada, o ministro prorrogou a investigação por mais 60 dias, a pedido da Polícia Federal.
Bolsonaro está freneticamente empenhado em fomentar — e em fermentar — o golpismo e não pode deixar seus extremistas sem a ração diária de ódio. Se as pesquisas insistirem em apontar a sua derrota, parece tentado a impedir a realização das eleições. E aí o "seu povo", "armado para não ser escravizado", teria papel importante na promoção da violência "em nome da nossa liberdade".
A República está entregue a um subversivo. E ele busca arrastar as Forças Armadas na sua subversão.