Topo

Reinaldo Azevedo

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Roteiro do golpe no celular de Cid; o coronel Lawand e Bolsonaro na Papuda

Jair Bolsonaro, Mauro Cid -- sempre às volta com celulares -- e, no destaque, coronel Lawand, o então subchefe do Estado-Maior do Exército, que falava em golpe sem nenhum pudor - Caio Rocha/iShoot/Agência O Globo; Reprodução
Jair Bolsonaro, Mauro Cid -- sempre às volta com celulares -- e, no destaque, coronel Lawand, o então subchefe do Estado-Maior do Exército, que falava em golpe sem nenhum pudor Imagem: Caio Rocha/iShoot/Agência O Globo; Reprodução

Colunista do UOL

16/06/2023 04h28

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

A Polícia Federal encontrou no celular do coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de Jair Bolsonaro, o roteiro de um golpe de estado. Não chega a ser uma minuta em "juridiquês" capenga, como aquela que estava na casa de Anderson Torres, mas também esse texto traduz o entendimento porco que a turma do então presidente, a começar do próprio, tinha da ordem legal — e, por isso mesmo, planejava-se a desordem. A Veja teve acesso a um relatório de 66 páginas produzido pela Diretoria de Inteligência da Polícia Federal reunindo material contido no celular de Mauro Cid. Os peritos escarafuncharam mensagens de WhatsApp, áudios, backups de segurança e arquivos armazenados. O conteúdo pode ser assombroso, mas não surpreendente. E, atenção!, há militar graúdo na história que tem de ser alcançado pelo inquérito que investiga a arquitetura da tentativa de golpe.

O ROTEIRO DO GOLPE
O golpe naquela minuta encontrada na casa de Torres passava pela decretação de estado de defesa no Tribunal Superior Eleitoral e eventualmente nos TREs, com a consequente destituição dos ministros da corte eleitoral e nomeação de uma junta de nove interventores, sob a batuta do Ministério da Defesa.

No celular de Cid, há uma versão um tantinho mais bruta. A coisa seria feita assim:
1: Bolsonaro, ainda na Presidência, enviaria aos respectivos comandantes das Forças Armadas um relato das supostas inconstitucionalidades praticadas pelo Poder Judiciário, especialmente pelo TSE, e pediria a pronta intervenção militar;

2: os comandantes militares, então, atendendo ao pedido do presidente, nomeariam um interventor — sim, para governar o Brasil — dotado de poderes absolutos. Não há detalhes sobre o que aconteceria com o Poder Legislativo. Entende-se, mas não está claro, que Bolsonaro permaneceria como a face civil (???) de um regime militar;

3: esse interventor teria poderes para suspender todas as decisões que considerasse inconstitucionais, como a diplomação de Lula, e afastaria, preventivamente, do TSE os ministros Alexandre de Moraes, Cármen Lúcia e Ricardo Lewandowski. Em seu lugar, seriam designados Nunes Marques, André Mendonça e Dias Toffoli;

4: o interventor também determinaria a abertura de inquéritos para investigar os magistrados e marcaria uma nova eleição, sem data previamente definida — só quando a ordem constitucional fosse restaurada.

MALUQUICE E ARTIGO 142
A essa altura, o leitor já pensou: "Mas isso é uma sandice! E o Supremo? E o Congresso? Por que aceitariam isso? Bem, não aceitariam, é claro!, ainda que se delire com a colaboração de três ministros. Mas lembrem-se: o interventor teria poderes absolutos. Quem não topasse a quartelada, iria em cana.

Mas qual a teoria, havendo alguma, que daria sustentação a essa estupidez? Ora, a suposição, endossada, por exemplo, por Ives Gandra Martins, de que o Artigo 142 da Constituição confere às Forças Armadas o papel de Poder Moderador. Sustenta o doutor que, havendo um conflito insanável entre os Poderes, os militares poderiam ser chamados a intervir, o que é, evidentemente, uma aberração.

E como ficaria caracterizado esse conflito? Vejam ali: o presidente se encarregaria de anunciá-lo, apontando supostas decisões ilegais dos tribunais.

No documento, encontrado no celular de Mauro Cid, o autor do plano golpista -- ainda não se sabe quem é -- escreve, por exemplo:
"Entende-se que o conjunto dos fatos descritos seriam capazes de demonstrar não só uma atuação abusiva do Judiciário, mas também abuso praticado pelos maiores conglomerados de mídia brasileira de modo a influenciar diretamente o eleitor e o resultado da eleição em favor de determinado candidato".

GENTE GRAÚDA
Mauro Cid não é o único militar graúdo envolvido na lambança. O então ajudante-de-ordens de Bolsonaro troca mensagens com o coronel Jean Lawand Junior, então subchefe do Estado-Maior do Exército, que se mostra um fanático do golpe. Há várias mensagens: desde a derrota de Bolsonaro até as vésperas de o então presidente deixar o país.

Lawand instiga: "Ele [Bolsonaro] tem de dar a ordem, irmão. Não tem como não ser cumprida". Conivente, Cid responde: "Estamos na luta". Num áudio, o coronel dramatiza: "Pelo amor de Deus, Cidão. Pelo amor de Deus, faz alguma coisa, cara. Convence ele a fazer. Ele não pode recuar agora. Ele não tem nada a perder. Ele vai ser preso. O presidente vai ser preso. E, pior na Papuda, cara".

Não pensem que Mauro Cid desestimula o outro. Sugerindo que o assunto é tema de conversas com o presidente, responde: "Ele não confia no ACE". O ACE é o Alto Comando do Exército.

Em outra mensagem. Lawand diz ter se encontrado com o general Edson Skora Rosty, subcomandante de Operações Terrestres, e este teria assegurado, nos termos do coronel: "Se o EB receber a ordem, cumpre prontamente", mas, "de modo próprio, o EB nada vai fazer porque será visto como golpe. Então, está nas mãos do PR". Para ficar claro: "EB" é Exército Brasileiro. "PR" é presidente. E onde ele escreveu "modo", deve-se ler "moto".

Agora notem: Lawand não é um qualquer: já comandou o 6º Grupo de Mísseis e Foguetes e era, reitere-se, subchefe do Estado Maior do Exército. No governo Lula, foi transferido para Washington, como representante do Exército Brasileiro. Procurado, afirmou que Cid é seu amigo e que não se lembra da conversa. Memória fraca para tanto entusiasmo. Na última conversa entre os dois, no dia 21 de dezembro, o coronel que agora serve nos EUA lamenta que a mobilização golpista "não vai dar em nada" e, decepcionado, afirma: "Entregamos o país aos bandidos". E recebe de volta: "Infelizmente".

O GRUPO
Informa a Veja:
"Cid também fazia parte de um grupo de WhatsApp com 'militares da ativa' batizado de "Dosssss!". A PF não identifica esses militares, mas lista mensagens com pregação golpista e uma ameaça a Alexandre de Moraes, o "careca". "Estejamos prontos? A ruptura institucional já ocorreu? Tudo que for feito agora, da parte do PR, FA e tudo mais, não vai parar a revolução do povo", diz um militar. 'Vai ter careca sendo arrastado por blindado em Brasília?', questiona outro."

Outro texto do celular de Cid trata da possibilidade de decretação de estado de sítio. E Moraes, claro!, é de novo citado. Lá está escrito:
"Nestas eleições, o ministro Alexandre de Moraes nunca poderia ter presidido o tse, uma vez que ele e Geraldo Alckmin possuem vínculos de longa data, como todos sabem".

AS GOLPISTAS
Chama a atenção no relatório da PF o entusiasmo golpista de Gabriela, mulher de Mauro Cid, que teve o celular apreendido na investigação sobre fraude em registro de vacina -- que ela confessou à PF, diga-se. Informa a reportagem:
"Gabriela aparece como uma militante aguerrida. Faz convocações para que apoiadores de Bolsonaro 'invadam' Brasília, prega uma paralisação dos caminhoneiros e ataca Alexandre de Moraes. Em um diálogo com Ticiana Villas Bôas, filha do general Eduardo Villas Bôas, ex-comandante do Exército, travado logo depois do segundo turno das eleições, ela prega a necessidade de um novo pleito e a adoção do voto impresso. 'Estamos diante de um momento tenso onde temos que pressionar o Congresso', diz. A filha do general responde de maneira incisiva: 'Ou isso ou a queda do Moraes'."

ENCERRO
Não há como Mauro Cid se sair bem dessa jornada. E parece inescapável que o Exército chame de volta ao país o coronel Lawand. Os diálogos indicam que ele expressava em suas mensagens bem mais do que um desejo. Tratava-se de uma articulação, por mais ensandecida que fosse. Não estamos falando de uma ordem de arruaceiros de cervejaria, mas do Exército Brasileiro. E também fica claro: não é que Bolsonaro não soubesse... Ele só não se sentia seguro o bastante diante do "ACE"... O tal coronel acertou numa coisa, intuo: Bolsonaro ainda vai para a Papuda.