Eleições provam farsa da polarização e derrotam Bolsonaro; o centro é Lula
Caras e caros, há análises para todos os gostos. A depender do lugar em que o observador decida fixar a atenção, chega-se a uma conclusão distinta. E, por certo, a escolha do foco também expressa, em muitos aspectos, a visão de mundo daquele que vê. Daí ser absolutamente verdadeira a máxima de que nem sempre a opinião publicada representa a opinião pública, esta faceira serelepe de muitos e tão variados parceiros. Daí que eu julgue necessário, tanto quanto possível, atravessar as várias camadas de glacê dos números para tentar enxergar o que diz a massa do bolo, aquilo que realmente garante a sua estrutura.
Uma nota curta ainda a respeito do que, no fim das contas, não importa. Se o desempenho dos partidos nas eleições municipais fosse preditor do futuro presidente da República, Lula não teria vencido cinco das nove eleições diretas depois da redemocratização. E não foram seis porque foi vítima de um golpe judicial desferido pela Lava Jato. Mas que esta verdade insofismável não nos impeça de perceber alguns movimentos nas placas tectônicas do país — e não tratarei deles neste longo artigo.
A FARSA DA POLARIZAÇÃO
Acho curioso ler textos e chamadas nos geradores de caracteres da TV anunciando que "a polarização perdeu força no país". Como sabem, bati-me contra essa bobagem, que se mostrava avassaladora, praticamente sozinho. Tenho o mau hábito de ser aborrecidamente lógico nas coisas da política, da economia e da vida prática. Em poesia, nas artes no geral, nas manifestações, enfim, estéticas, penso que a racionalidade é importante, mas não pode ser uma aguarrás contra a beleza. Que a razão venha depois da fruição, da perplexidade e do transe. Quando trato de política, tudo tem de estar certo como dois e dois são quatro. Aquele domínio em que são cinco é o da maravilha, do desencanto, da utopia -- em suma, é o da arte. Adiante.
Como é mesmo? "Polarização perde força na eleição de 2024"? Mas quando a dita-cuja foi forte? Entremos um tantinho no jogo das aparências. A se dar crédito a certas análises, o presidente Lula pode pegar o seu banquinho e sair de mansinho. Afinal, o PT elegeu um número maior de prefeitos do que há quatro anos, mas o desempenho foi modesto, sendo derrotado em antigos redutos importantes e lhe sobrando uma de 26 capitais para administrar. Se Lula era um polo, "Pluft!!!" Desfez-se.
Pergunta perturbadora: mas ele era um dos polos?
E o outro? Bem, o outro, dizia-se, era Jair Bolsonaro, que vejo como o derrotado fragoroso dessa jornada porque, com raras exceções, viu seu candidato ser derrotado onde entrou de cabeça e teve de amargar uma vitória em São Paulo que nada deve a ele. Convenham: a falta de identificação com Ricardo Nunes jogou a favor do prefeito reeleito.
"Reinaldo acaba de se contradizer; isso só prova que a polarização perdeu força." Errado. Isso só evidencia que ela nunca existiu porque, como demonstra a respectiva obra de cada um desses líderes, Bolsonaro é de extrema direita, mas Lula nunca foi de extrema esquerda. Ou desenvolvam aí uma redação do Enem demonstrando que um esquerdista radical contempla com ministérios, em seu governo, partidos como o MDB (3), PSD (3), União Brasil (3), Republicanos (1) e Progressistas (1). As palavras ainda fazem sentido?
Lula, um inequívoco moderado, teve uma atuação modestíssima nessa campanha, inclusive na capital paulista. Tarcísio de Freitas, governador (Republicanos), pôde mobilizar mundos e, sobretudo, fundos em favor de seu candidato sem que isso ameaçasse a sua base parlamentar. O presidente não gozou dessa licença. Justamente porque não era um polo, evitou uma luta politicamente sangrenta para eleger seu candidato. "E se o tivesse feito?" Não vou contar a história que não houve. A que houve já rende controvérsia o que basta.
Bolsonaro, um real extremista, este nos conta uma outra história. Seu partido anunciava uma razia sobre as legendas de direita e centro-direita com a pretensão de eleger 1.500 prefeitos. O "capitão", dizia-se, iria operar tais prodígios com a simples menção de seu nome. Teve de se contentar com 516. No primeiro turno, a legenda fez duas capitais: Rio Branco e Maceió. Disputou o segundo turno em nove outras — um campeão! —, mas se elegeu em apenas duas: Cuiabá e Aracaju. Juntas, as quatro cidades têm a população de Fortaleza.
Esse Midas às avessas poderia ter se sagrado um vitorioso em São Paulo, mas, como já se disse, ausentou-se da disputa. Atravessou a rua para comprar uma briga em Goiânia e foi humilhado pelo governador Ronaldo Caiado, do União Brasil, um politico nitidamente de direita, mas nunca um agressor da democracia. Por que o ódio? Porque o líder goiano se coloca como um pré-candidato à Presidência da República. Em Curitiba, ignorou a chapa que conta com um vice do PL — que estaria à direita de Gengis Khan... — e preferiu se aliar a uma senhora que costuma dizer coisas que não são deste mundo.
TAL RESULTADO, QUAL O NOME?
Aquele que se lançou na disputa eleitoral prometendo engolfar o processo político e, de posse do resultado, achar que poderia converter, diante do Congresso, a anistia num fato consumado, restando ao Legislativo a simples homologação, acabou sendo expelido por ele. O PSD de Gilberto Kassab elegeu 887 prefeitos; o MDB, 856; o PP, 747; o União (de Caiado), 584. Só depois aparece o PL: 516. Na sequência, vêm o Republicanos, com 435, o PSB, com 309; o PSDB, com 273; o PT, com 252, e o PDT, com 151. Há outros, mas paro por aqui. Nessa lista já exaustiva, só duas legendas não têm assento no ministério de Lula: o PL e o PSDB
E todas, exceção feita ao PT (na hipótese de o PDT seguir com os petistas), têm uma coisa em comum: não dispõem de um nome para disputar a Presidência. "Mas e Tarcísio?" Se a sua garantia era o "capitão", está mal de padrinho e corre o risco de morrer pagão. O governador de São Paulo se aventurou a apoiar um candidato fora de São Paulo. Resolveu dar uma força para Bruno Engler (PL) em Belo Horizonte, que não hesitou em levar a disputa para a lama. E perdeu. É evidente que os progressistas, para ser genérico, despejaram votos no prefeito Fuad Noman (PSD) para evitar o mal maior. Nota à margem: o governador Romeu Zema (Novo) foi derrotado duas vezes: ao apoiar, inicialmente, a candidatura de Tramonte e, depois, ao aderir a Engler. Obra realmente de gênio para quem chegou a ter ambições presidenciais...
A "polarização", que dizem ter perdido força, nunca existiu. Como inexiste um atavismo — a exemplo do que sugere o colunismo entre conservador (de iniquidades) e reacionário — que empurra o Brasil para a direita, embora essa gente valente simule cantar as glórias do centro...
A propósito: dada a lista de legendas acima, quem ali pode se dizer centrista? O PSD de Eduardo Paes (Rio) — um dos grandes vitoriosos deste ano — ou o de Eduardo Pimentel (Curitiba)? O MDB de Ricardo Nunes (SP) ou o de Igor Normando (Belém)? O Progressistas de Cícero Lucena (João Pessoa) ou o de Adriane Lopes (Campo Grande)? O União Brasil de Sandro Mabel (Goiânia) ou o de Bruno Reis (Salvador)?
Mais do que pelas palavras, conhecem-se homens e partidos por suas obras, verdade haurida das Escrituras. O dado insofismável é que o PT é um partido de esquerda — e assim concedo porque assim ele se considera; por mim mesmo, eu o diria de centro-esquerda —, mas, por ora, só existe um líder de centro importante no país: chama-se Luiz Inácio Lula da Silva. E a tese da polarização nunca passou de uma importação da realidade americana para a brasileira. Os EUA ficaram presos àquele 6 de janeiro, que, em certa medida, será reeditado nas próximas eleições. Os brasucas encontraram uma resposta bem mais rápida.
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"Ora, Reinaldo, mas você não admite que Tarcísio é o 'nome de centro' que surge na política brasileira? Estão de brincadeira? Nem ele ousa se dizer um centrista. Nem Kassab, que o considera uma grande revelação da política, assim o denomina.
Tarcísio segue sendo uma expressão de um polo — a extrema direita; eu nunca reconheci, e não reconheço, é a existência do polo oposto como alternativa de poder: a extrema esquerda. Onde ela está? Se Guilherme Boulos tivesse vencido em São Paulo, a capital seria administrada por um político de esquerda, sim, não por um extremista.
Para Tarcísio se firmar como alternativa da direita, precisa, relativamente, caminhar muitos passos para a esquerda, coisa que não parece disposto a fazer. E não porque Bolsonaro o assombre. É que ele não quer.
Um direitista democrático não sobe em palanque para defender anistia a golpistas.
Um direitista democrático não adere ao proselitismo para depor ministro do Supremo.
Um direitista democrático não diz "não estou nem aí" diante da evidência de que sua polícia mata a esmo.
Um direitista democrático não (mal) vende um bem público para demonstrar fidelidade a uma ideologia.
Um direitista democrático não comete o pior de todos os crimes eleitorais havidos nesta campanha de 2024.
Vale dizer: para que Tarcísio venha a ser de centro, ele precisa antes experimentar o território da direita democrática.
CONCLUO
Para a angústia de muitos, a eleição de 2026 ainda não dá pistas de quem será o Dom Sebastião do Nem-Nem -- nem Lula nem Bolsonaro. E, como se sabe, Bolsonaro está fora do jogo, mas Lula não.
Como no poema "Quadrilha", de Drummond, não se conhece o nome de J.Pinto Fernandes. E, claro!, espero que este centrista alternativo a Lula, se houver, não coloque a sua soberba a serviço da violência policial e de um crime eleitoral.
A propósito: e agora, Justiça Eleitoral? Felizmente, não se normalizou o crime em favor de Jair Bolsonaro. Será Tarcísio o merecedor de tal deferência da Corte à esculhambação?
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