Reinaldo Azevedo

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Opinião

Justificadores de escravidão e iniquidades mudam de tema, não de argumentos

Não é de hoje que brasileiros deportados pelos Estados Unidos chegam algemados. Uma espécie de protocolo firmado em 2021 trata, sim, do procedimento, e, durante o governo Biden, pessoas chegaram nessa condição. Essa conversa saltou das hostes bolsonaristas para certas esferas da, digamos, análise, com dois propósitos:
1: desmoralizar as manifestações de repúdio ao ritual de humilhação;
2: tentar inverter um ônus político: como a extrema direita e a direita saudaram a chegada de Donald Trump ao poder, registra-se um incômodo óbvio: aplaudem um sujeito que transformou os imigrantes em demônios, e, vejam só, os imigrantes da vez são brasileiros. E como amenizar o desconforto? Ora, copiando o argumento de Eduardo e Carlos Bolsonaro: a indignação das esquerdas ou dos progressistas seria seletiva.

Bem, a operação mental é canalha de várias maneiras:
1: em primeiro lugar, não ameniza as agruras por que passaram os brasileiros;

2: ignora a agressão a direitos fundamentais — noto: falo em "direitos fundamentais" —, deslocando-se a atenção para aqueles que se manifestam, como se a tentativa de desmoralização do crítico fizesse o fato desaparecer;

3: dispensa à violência o tratamento de coisa corriqueira, numa indagação silenciosa ou nem tanto: "Mas o que há de novo nisso?";

4: em vez de se denunciar e se repudiar a violência, denuncia-se e repudia-se o alegado oportunismo das esquerdas;

5: a consequência da argumentação, se bem-sucedida e se convencer a maioria, faz de Donald Trump mero continuador de uma política de imigração — e não apenas para brasileiros — que já estaria em prática no governo Biden, o que é mentira. Sim, havia deportações. A máquina que o republicano passou a mover tem outra dimensão;

6: a burla vira capítulo, no fim das contas, da guerra cultural posta em prática por Trump: na verdade, os progressistas seriam os grandes criadores de "fake news", demonizando patriotas que estariam apenas cumprindo ou o seu dever funcional ou aquilo que teriam pactuado com os eleitores, a exemplo do presidente norte-americano;

7: estaríamos diante de mero berreiro das esquerdas de sempre, inconformadas com a vontade dos eleitores expressa nas urnas, como se o pensamento politicamente correto ou a "cultura woke", para citar o delinquente Javier Milei — que resolveu mimetizar seu ídolo com uma guerra à imigração de bolivianos —, houvesse produzido coisas como o 6 de janeiro de 2021 ou o 8 de janeiro de 2023;

8: os que invertem o ônus do peso político do absurdo a que se assistiu reivindicam ainda uma espécie de pensamento alternativo, como se, nesse e em outros temas, realmente vigesse uma ditadura do politicamente correto. Assim, essa turma exibe a grande coragem ou de atacar as vítimas ou de ignorá-las, elegendo, nesse caso, como alvos os críticos das políticas dos EUA para a área;

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MENTIRAS E OMISSÕES
Observem: tudo isso estaria presente ainda que tal estratégia discursiva não ignorasse os fatos. Ocorre que ela embute mentiras e omissões flagrantes.

Em primeiro lugar, os brasileiros foram maltratados no voo. Testemunhos vários apontam que pessoas foram agredidas e submetidas a humilhações que vão muito além das algemas. Em voos anteriores, tão logo a aeronave pousava em solo brasileiro, as algemas eram retiradas.

Desta feita, além das agressões físicas no curso do voo — e não há relatos de que tenham acontecido antes —, houve o problema com o avião. Já no Brasil, as pessoas permaneceram algemadas, contrariando as leis brasileiras. E, aí sim, foi preciso que o governo daqui entrasse em ação, como fez o ministro Ricardo Lewandowski, para lembrar que temos uma legislação a respeito.

As agressões praticadas e o clima de terror que se instalou levaram os repatriados a uma revolta, o que acabou apressando a correta intervenção de Brasília.

OU, ENTÃO, FAZER O QUÊ?
Diante do que se viu e se sabe, o que deveria ter feito o governo brasileiro? Aberto mão de defender seus nacionais em solo pátrio, alegando costume? "Ah, sempre foi assim, e a revolta dos que foram submetidos a sevícias é descabida; afinal, não entraram ilegalmente nos EUA? Não fizeram essa escolha? Pois que arquem com as consequências." Queriam isso?

Ainda que a reação de repúdio tenha partido majoritariamente do chamado campo progressista, isso muda o fato, falseia a dor e a humilhação dos agredidos, elimina o flagrante desrespeito às leis brasileiras quanto o avião já estava em solo nacional? Esse direitismo ginasiano, da quinta série, que reivindica a condição de uma categoria superior de pensamento é patético, talhado para assanhar lacradores reacionários das redes.

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Ademais, se não fossem os progressistas a protestar, seria quem? Certamente, não a turma que anda com chapéu do movimento MAGA na, por assim dizer, cabeça nem seus incensadores que se querem "isentos" — afinal, segundo dizem, comprometidos e com "parti pris" são sempre "os outros".

INDAGAÇÃO FINAL
Encerro com uma indagação: fosse possível voltar no tempo, dado o modo como pensam esses valentes, o que estariam escrevendo quando se debatia a abolição da escravatura. Imagino um deles: "Temos de considerar que os senhores de escravos também estão inseridos em nossa realidade econômica; se não podemos fechar os olhos para a escravidão, tampouco parece correto ignorar os impactos econômicos..." E o outro? "Liberdade? Mas o que é liberdade? Um senhor de escravos pode estar mais preso às suas dores do que o cativo que está na lavoura. Só ingênuos e idiotas acreditam que alguém pode ser livre". Ou então aquela, com a delicadeza habitual: "Ocupe-se da sua vida em vez de se preocupar com a liberdade alheia".

Essas bestas ainda estão por aí. O assunto mudou, mas não as opiniões, a qualidade dos argumentos e o andar a que servem.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

17 comentários

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Patricia Lima Torres

Esta gente não aprende nada. Quem dera desaprendesse o comportamento de baderneiros da quinta série ou da turma do “fogo no parquinho”. Não há argumentação possível com eles. Só sabem produzir “cortina de fumaça”, discurso de ódio e “fake news”. Os fatos não interessam. São apenas um detalhe. Obviamente, a isenção é seletiva. A inversão do ônus político se chama perversão.

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Luiz Alberto Marcolin Conceicao

Caro Jornalista Reinaldo, tenho a convicção que se, em algum momento, a Lei Áurea for revogada, os extremistas de direita serão os primeiros a se deslocarem para o Cais do Valongo, para comprar suas "mercadorias"

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Jansen José Crisóstomo Escarmelote da Silveira

Reinaldinho Nostradamus, tem que desmoralizar mesmo esse governo e principalmente a ministra dos direitos desumanos. Quer aparecer, não entende de nada. Caiu de para-quedas no governo. Não tem competência. 

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