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Em documento interno, maternidade de referência em SP assume excesso de bebês nascidos com problemas

Fachada da maternidade Leonor Mendes de Barros, na zona leste de São Paulo - Rogério Cassimiro/UOL
Fachada da maternidade Leonor Mendes de Barros, na zona leste de São Paulo Imagem: Rogério Cassimiro/UOL

Arthur Guimarães<br>Do UOL Notícias<br>Em São Paulo

17/09/2010 08h00

Um documento interno assinado pelos administradores da maternidade Leonor Mendes de Barros, no Belenzinho, zona leste de São Paulo, alerta para uma excessiva quantidade de bebês que nasceram com problemas respiratórios em fevereiro deste ano na unidade. Reportagem publicada quarta-feira (15) no UOL Notícias apontou que, apesar de a maternidade ser considerada referência para atendimento de partos de média e alta complexidade e ter recebido prêmios por sua qualidade, documentos internos do hospital mostram que os médicos reclamam de carências estruturais no atendimento à população. A Secretaria Estadual da Saúde de São Paulo nega a existência dos problemas.

No memorando 80/2010, assinado em 17 de março deste ano, dois diretores relatam que houve no mês anterior um excesso de casos chamados de "eventos adversos graves", termo para designar algum problema que "resulta em dano físico ou moral grave, antecipando o óbito, provocando perda de órgão ou função ou levando a dano moral irreversível".

Por conta da constatação, a direção faz a seguinte recomendação aos médicos: "Devemos, portanto, estar mais atentos para evitar essas ocorrências". Na sequência do texto, um trecho chama a atenção para a necessidade de supervisão sobre o trabalho dos residentes médicos. "Os residentes do segundo e terceiro ano assumem novas funções e dependem da supervisão e vigilância dos médicos plantonistas para evitar complicações no parto", diz o memorando.

Em  fevereiro, relatam os administradores da maternidade no documento, foram registradas 43 internações na Unidade de Terapia Intensiva (UTI) Neonatal. Desses casos, 14 crianças eram "de termo", ou seja, tiveram a gestação completa e, conforme especialistas ouvidos pela reportagem, teoricamente tenderiam a apresentar baixa incidência de problemas de falta de oxigenação. Todos esses bebês necessitaram de reanimação e foram entubados, segundo o memorando.

No documento, a direção do hospital faz ainda outras considerações. Como mostram as informações presentes no memorando, 100% dos bebês apresentaram desconforto respiratório, e 40% apresentaram crise convulsiva no nascimento. "Houve pelo menos um caso de asfixia perinatal em todos os plantões", diz o memorando da maternidade. Casos como esses podem deixar sequelas nas crianças, que podem vir a crescer com problemas respiratórios e cerebrais.

Uma médica de um importante hospital privado de São Paulo analisou o documento e disse que a incidência foi "demasiada". Maria Fernanda Branco, professora da disciplina de pediatria neonatal da Universidade Federal de São Paulo e coordenadora do Programa de Reanimação Neonatal da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), afirma que o problema é generalizado. Segundo estudos que ela desenvolveu com base em números oficiais do registro de óbito de crianças no Estado, pelo menos 800 crianças morrem anualmente em São Paulo por quadros que tiveram a contribuição de asfixia perinatal. "É uma realidade muito grave. É um índice alto. E só o acompanhamento correto e um pré-natal bem feito, conduzidos por profissionais preparados e com bons equipamentos, podem ajudar a melhorar a situação", diz ela, tida como uma das maiores referências no assunto no país.

Marisa Mussi-Pinhata, professora do Departamento de Pediatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), explica que não é correto relacionar de forma direta a falta de equipamentos como o cardiotoco ao excesso de crianças com problemas respiratórios no hospital. Tal aparelho, usado para medir a vitalidade do bebê, nem sempre está disponível em número adequado para uso dos médicos, como mostram documentos de várias épocas registrados no livro de ocorrência da unidade. "Não é exato. Não é definitivo, como em tudo na Medicina. Ou seja, não é possível dizer que ter um cardiotoco evita a asfixia perinatal, mas ele de fato auxilia a identificar problemas na evolução do trabalho de parto e, se bem usado e em bom funciomanento, ajuda a diminuir a incidência do problema."

A Secretaria da Saúde diz que não há falta de equipamentos na unidade (leia mais abaixo).

Um médico da própria maternidade Leonor, que pediu para não ser identificado, afirmou ao UOL Notícias que a falta do aparelho é rotineira e atrapalha o atendimento da população. "Se a gente tivesse as mesmas condições de um hospital privado, por exemplo, tenho certeza que o monitoramento seria mais bem feito e os problemas seriam menores."

Sobre a insinuação de que os médicos residentes poderiam ser os culpados pelos "eventos adversos graves", a professora da USP diz que cabe à direção supervisionar o trabalho dos iniciantes. "Deve existir uma supervisão permanente e contínua dos médicos residentes, para tirar dúvidas e atuar em casos mais complexos", explica.

Outro lado
Em nota oficial, a Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo afirma que o número observado em fevereiro "é o dobro da média histórica do Leonor, que é de três casos por mês". Por isso, segundo o órgão, é que "a diretoria, atenta a este acontecimento, decidiu emitir o alerta ao qual a reportagem teve acesso".

A secretaria credita a situação ao suposto alto número de casos graves encaminhados para a unidade. "Vale ressaltar que é comum a internação de pacientes de termo na UTI neonatal, uma vez que a maternidade atende a gestantes de risco", diz a nota. "Há necessidade de cuidados intensivos após o parto, mesmo de bebês com nove meses de gestação, em diversas situações, como síndrome hipertensiva gestacional, grávidas com diabetes, hemorragias durante a gestação, descolamento prematuro de placenta e quadros infecciosos decorrentes do rompimento da bolsa", afirma o texto oficial, complementando: "O Leonor atende primordialmente a esse perfil de gestante".

A pasta argumentou ainda que o memorando "nada mais é do que um alerta da Divisão Médica do Hospital Leonor Mendes de Barros aos plantonistas em relação a uma situação atípica ocorrida no mês de fevereiro, relativa aos bebês internados na UTI Neonatal da unidade". Segundo o órgão, "trata-se de uma iniciativa de gestão perfeitamente legítima, visando aprimorar o atendimento oferecido às gestantes e seus bebês".

O governo informou que, a partir do aumento do número de eventos adversos, a diretoria emitiu o alerta a todos os plantonistas e implantou um livro para notificação, com detalhes, dessas ocorrências, pelos plantonistas do hospital". "Com este alerta e o consequente aprimoramento dos serviços pela equipe médica, o número de eventos adversos graves em pacientes de termo retornou ao patamar anterior, com média de 3 por mês, dentro da média histórica da unidade", diz a nota.

"Não há falta de cardiotocos ou sonares, e os relatos apontados no livro de registro obtidos pela reportagem podem refletir situações absolutamente pontuais ou opiniões pessoais sobre o número de equipamentos que o profissional considera ideal", diz a nota oficial, que prossegue: "O hospital possui nove cardiotocos e 23 sonares, distribuídos entre centro obstétrico, pronto-atendimento, ambulatório, centro de parto normal e casa da gestante. Vale ressaltar que o exame de cardiotoco não é realizado em todos os casos, mas sim naqueles com indicação médica específica".

Arquivamento
O Ministério Público de São Paulo (MP-SP) informou na quarta-feira (15) que a reportagem sobre problemas na maternidade estadual Leonor Mendes de Barros será anexada a um processo que tramita na Justiça desde 2003 pedindo a melhora nas condições de atendimento à população na unidade.

Segundo Arthur Neto Pinto, promotor de Direitos Humanos na área da Saúde Pública, as imagens e documentos contidos na reportagem serão juntados ao processo de execução provisória 53.03.024368-0. Com a medida, o promotor espera que a Justiça obrigue a Secretaria Estadual de Saúde a melhorar imediatamente a qualidade do atendimento na maternidade. "A matéria é a prova provada de que a situação continua dramática", disse.

Uma das perícias que embasam a representação do MP, no entanto, foi arquivada pelo órgão. Segundo a Secretaria da Saúde, em 2008 foi feita uma nova análise na unidade e o processo investigativo anterior foi arquivado. A ação civil pública do MP-SP foi julgada procedente em primeira instância e, hoje, aguarda novo julgamento.