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Assentamento foi feito em "condições sub-humanas", diz Tribunal de Contas

Área da agrovila está a 16 km aproximadamente da área urbana do município de Itapipoca - Ciro Barros/Agência Pública
Área da agrovila está a 16 km aproximadamente da área urbana do município de Itapipoca Imagem: Ciro Barros/Agência Pública

Ciro Barros e Giulia Afiune

Da Agência Pública

17/04/2015 06h00

Pouco mais de um ano após o início do reassentamento das famílias para a agrovila Gameleira, o promotor Glaydson Alexandre, do Ministério Público de Contas do Estado do Ceará, fez uma inspeção no local, a pedido do promotor Igor Pereira Pinheiro, do Ministério Público Estadual da comarca de Trairi, município em que está localizada a agrovila.

O resultado da visita foi uma representação no Tribunal de Contas do Estado contra a SRH (Secretaria de Recursos Humanos) e contra a EIT, empresa que construiu o açude e a agrovila.

“Como se constata, as famílias assentadas vivem em condições sub-humanas, pela falta da infraestrutura prometida pelo Estado, através da SRH, e não realizada pela empresa contratada, EIT, que acaba por colocar aquelas famílias em situação de miséria, ante a falta de água e energia. Frisa-se que, sem água e energia elétrica, os colonos não podem realizar as suas rotinas básicas e ficam impossibilitados de ganhar alguma renda”, escreveu o promotor na representação de março de 2012.

“É importante ressaltar que, no caso em apreço, é nítida a ofensa ao princípio da dignidade da pessoa humana, tendo em vista que a SRH e a EIT descumpriram o contrato firmado entre ambos, que culminaria na efetivação de benfeitorias aos colonos assentados. Pior, a SRH não logrou em tornar realidade as promessas (contrato implícito) efetivadas às famílias, deixando-as em condições sub-humanas, ante principalmente a falta de água e energia elétrica para a comunidade Gameleira”, destacou o promotor na mesma peça.

Francisco Venílson dos Santos, 39, lembra que, logo depois que se mudou, se irritava ao olhar a caixa-d’água, sempre vazia, construída no meio da comunidade.

“Eles foram lá, fizeram essa caixa só pra boniteza, só pra ficar bem na foto. Água mesmo não tinha, não, e não tem até hoje, ali dentro”, comenta. “Sem luz aqui era horrível. A gente passava muita dificuldade. Cozinhava uma coisa e estragava em seguida porque não tinha onde guardar. Não tinha uma água pra gente decentemente tomar, era ruim demais”, relembra a agricultora Maria Cícera da Silva Santos Arruda.

Foi quando Paulo Sérgio Alves, o mesmo que está hoje na associação dos moradores, resolveu fazer algo para ajudar a comunidade. “Aí eu conversando com um colega, a gente viu um dia a equipe da Coelce [Companhia Energética do Ceará] mexendo nuns fios. Aí eu virei pra ele falei: ‘Bora arrumar uns fios e vamos colocar um gato’. Não dava mais pra ficar sem luz”, conta, referindo-se à instalação ilegal de luz (o “gato”).

Paulo subiu num dos postes da rede elétrica das comunidades próximas e puxou um fio para dentro das casas dos reassentados. “Nas casas que tinha gente, eu consegui colocar em todas. Todas mesmo. Aí a gente conversou aqui e eu pedi pra eles que acendessem só um bicozinho de luz por casa, que não abusasse da energia. Geladeira, essas coisas, não tinha como ligar. Porque, se desse problema, ia tirar a luz de outros moradores que pagavam, né?”, diz.

O “gato” durou mais ou menos nove meses, até que, em janeiro de 2012, a Coelce cortou a gambiarra, como lembra, ainda revoltada, a agricultora Expedita. Moradora da área do Cipó, comunidade à beira do rio Mundaú, ela tocava com o marido um bar na própria casa de taipa em que viviam para complementar a renda familiar.

“Lá eu tinha a minha venda, fazia minhas serestas, festinhas de alpendre assim. Eu e meu marido somos agricultores desde que nascemos, mas a gente tinha montado esse negócio pra ver se dava uma rendinha diferente pra gente viver. E tava dando certo. Aí, quando foi pra vir pra cá, nós vendemos tudo. Tive que desfazer tudo pra vir pra cá, tive que vender barato as nossas coisas pra sair rápido. E vendi todas as minhas coisas pela metade do preço: a mesa de som, caixas, DVD, as cadeiras…”, diz. “Foi duro depois ver que eu tinha tido tanta pressa, mas aqui as coisas não estavam nem prontas ainda. Saímos lá do nosso canto pra vir pra cá passar aperreio.”

Dois meses após a primeira manifestação, o Ministério Público de Contas voltou a criticar a SRH e a EIT em outra representação oficial – a essa altura, em março de 2012, a primeira representação no TCE havia se tornado um processo.

Depois de ter analisado a documentação referente ao caso e as explicações da SRH, o promotor Glaydson Alexandre reafirmou que “a comunidade de Gameleira foi exposta a uma situação de total miséria, sem direito nem sequer a água e a energia. Neste ponto, tal contexto é agravado diante da verificação de que tais famílias detinham, antes da atuação estatal, fonte hídrica e energia elétrica em suas residências, conforme ficou assente no Plano de Reassentamento da Barragem Gameleira”.

A energia da Coelce só veio no fim de 2012, segundo os moradores – quase dois anos após a realização do reassentamento. Foi quando a Superintendência das Obras Hidráulicas (Sohidra) instalou o poço com dessalinizador na comunidade. O processo no TCE ainda não foi apresentado ao Pleno do tribunal para julgamento.

Banco Mundial: atrasos e problemas

O Banco Mundial também reconheceu que houve atrasos e problemas no processo de reassentamento da Gameleira, no Relatório de Conclusão de Implementação e Resultados do PROGERIRH (Projeto de Gerenciamento Integrado de Recursos Hídricos do Estado do Ceará), publicado em dezembro de 2012.

“As famílias foram reassentadas em janeiro de 2011, mas só tiveram acesso a água e energia em dezembro de 2012, apesar das muitas recomendações e alertas dadas pelo Banco em diferentes missões de supervisão em 2011 e 2012. Os atrasos se deram por problemas financeiros de algumas empreiteiras e pela falta de coordenação entre a SRH e a Companhia de Energia”, diz o texto, que não menciona a falta da adutora nem explica que a água disponível vem do poço e é, em sua maior parte, salgada. Os problemas na Gameleira foram um dos fatores que contribuíram para que a avaliação geral do projeto fosse rebaixada para “moderadamente insatisfatória”.

Indenização ou “agrado”?

Seguindo um pouco mais pelas estradas vermelhas e pedregosas no meio da caatinga, chegamos ao distrito do Deserto, já no município de Itapipoca. No alpendre de sua casa, o agricultor Antenor David de Araújo, 36, nos olha curioso e desconfiado. Ele faz parte do grupo dos atingidos pela obra do açude Gameleira que receberam indenização pela casa inundada.

Cerca de cinco anos depois de receber a indenização, Araújo vive em uma casa simples. “Na época eu recebi uma indenização de R$ 7.000”, lembra. “O dinheiro deu para levantar a casa mal, né? Ainda estou pelejando pra terminar”, diz.

Ele comenta que estranhou o valor da indenização já na época. “Achei baixa, mas a gente não tinha direito de reclamar nada, né? Porque o que eles diziam é que, se pegou, bem, se não pegou, o trator passa por cima e tchau e 'bença'. Era assim que eles diziam para a gente, que a gente tinha que receber”, conta.

Do outro lado da estrada, está a casa da agricultora Maria Socorro, 50, a quem pergunto se foi uma das indenizadas para a construção do açude Gameleira. “Indenizada não, a gente foi agradado para poder sair de lá”, faz questão de dizer. Ela era dona de um terreno com algumas casas onde morava com a família.

“O engenheiro que fazia a medição dizia: ‘Vocês têm três casas, vocês vão ganhar um dinheiro bom’. Eu acho apenas que ele enganou a gente, ele devia ter dito o valor de quanto era a casa. Como engenheiro, ele saberia dizer. Aí, quando veio a indenização, foi R$ 5.000 por casa. E o dinheiro ainda veio no nome do tio do meu marido. Aí deu um trabalho muito grande para receber, a gente pedia para liberar o dinheiro e eles não liberavam porque não tava no nome da gente”, relembra.

E compara: “Lá a gente tinha uma casa de morada que não era pequena, uma garagem de caminhão que também não era pequena, tinha uma casa com dois compartimentos que era para gente guardar farinha e outras coisas, tinha curral do gado, tinha casinha de galinha, pé de coqueiro, pé de mamão. O pessoal dizia que tudo ia ser pago, mas, quando veio a indenização, só foram pagas as casas em que a gente morava”, lamenta Maria Socorro.

A agricultora diz que as propriedades foram obtidas com muito sacrifício, o que a fez sofrer mais com a enganação. “Eu já morei numa casa de taipa só com uma porta de entrada e saída. Depois faleceu uma filha minha e eu tive outros filhos, não tinha como ficar lá. Com muita luta, a gente fez outra casinha de taipa já com três quartos. O meu marido é muito trabalhador e muito seguro com dinheiro: levava o povo para fazer feira de bicicleta e ia ganhando dinheiro, depois comprou um caminhão para levar mais gente. Aí a gente ficou lá e ele ficou guardando sempre um dinheirinho que dava até a gente conseguir fazer as casas de tijolo lá no Rio do Inácio. Só que aí veio o açude Gameleira e a história da indenização”, relembra com tristeza.

No distrito do Deserto, onde moram Araújo e Maria Socorro, também não há água no açude (só nos distritos urbanos da cidade de Itapipoca). A fonte de água que consomem é um trecho do rio Mundaú, afetado pela seca.

“O governo pra onde ele tivesse botado a gente ele podia ter levado a água junto, já que eles tiraram nós de lá onde a gente tava. Eles podem fazer isso, quem não pode fazer isso somos nós. Hoje a gente sofre por água também. Onde eu morava antes tinha água perto, não era água tratada, mas tinha. Se secasse, a gente cavava cacimba. Agora eu tô pedindo socorro aos outros pra me dar água”, conta Maria Socorro.