Greve da polícia no RJ deixa mulher ameaçada e idosa atropelada sem atendimento
Desde que começou a ser ameaçada pelo ex-companheiro, no dia 28 de janeiro, Maria* diz ter perdido as contas de quantas vezes foi a delegacias tentar registrar a ocorrência e buscar proteção. Moradora de Campo Grande, na zona oeste do Rio de Janeiro, ela procurou ajuda nas duas Deam (Delegacia de Atendimento à Mulher) da cidade e em outras três delegacias. Em todas elas, recebeu a mesma resposta: "Estamos em greve".
Tem sido assim há pouco mais de 50 dias. A paralisação dos policiais civis do Rio começou em 17 de janeiro, e não há previsão para a retomada total das atividades. Nesse período, apenas casos considerados graves ou flagrantes, como homicídios, estupros e sequestros, por exemplo, têm sido registrados nas delegacias fluminenses. Foi a estratégia adotada pela categoria para tentar pressionar o governo a pagar em dia os salários --hoje, atrasados-- e melhorar as condições de trabalho dos agentes.
"Eu fiz o registro no 180 [Central de Atendimento à Mulher] e me encaminharam para a Delegacia da Mulher, mas lá disseram que só poderiam me atender se eu já tivesse sido agredida, ou se ele fosse ex-presidiário, andasse armado ou fosse drogado. Não é o caso, mas desde que ele descobriu que eu comecei um novo relacionamento, ele tem me ameaçado por telefone, por WhatsApp, Facebook dizendo que ia me bater, me matar, sequestrar o nosso filho”, contou Maria, logo depois de deixar a 5ª DP, na Lapa, centro da cidade.
Na segunda-feira (6), após mais de um mês de tentativas, uma policial "de boa vontade" da delegacia a ajudou a fazer um “pré-registro” do caso pela internet. "No site, não pede nenhuma informação sobre as ameaças. A moça falou que chegaria no meu e-mail uma data para eu prestar depoimento. Mas não chegou nada”, disse, na quinta (9), quando voltou à unidade. Desta vez, foi orientada a procurar a delegacia de Bangu, mais perto de sua casa. Resignada, Maria disse que iria tentar outra vez.
Procurada pela reportagem do UOL, a Polícia Civil informou, em nota, que os registros de ocorrência alcançados pela paralisação continuam podendo ser feitos normalmente pela população através da “Delegacia on line”. Já as “emergências e casos complexos” estão sendo atendidos nas delegacias.
Mas não foi só em delegacias que o atendimento foi afetado por conta da greve. Subordinado à Polícia Civil, o IML (Instituto Médico Legal) continuou recolhendo e liberando corpos de vítimas de violência ou acidentes, mas deixou de fazer alguns exames. Em reservado, peritos contaram que os materiais para realização de testes de alcoolemia e toxicologia estão em falta.
Atropelada por uma Kombi no fim do ano passado, a aposentada Mônica, 74, que não quis informar o sobrenome, passou por cirurgia e foi hospitalizada. Caminhando com a ajuda de um andador, ela saiu de casa na manhã desta quinta para tomar as providências necessárias para conseguir a indenização do DPVAT –seguro para vítimas de acidentes de trânsito.
Inicialmente, foi até a 14ª DP para registrar a ocorrência. Ouviu que não conseguiria por causa da greve, mas, depois de muito insistir, conseguiu que alguém fizesse o registro. De lá, foi encaminhada para fazer o exame de corpo de delito no IML, mas desta vez o atendente foi irredutível e orientou que ela agendasse o procedimento depois que a greve acabar.
Mônica protestou. "Eu vim de táxi de longe, senhor. Por favor, estou gastando mais de R$ 150 de táxi. Não tenho ninguém para me ajudar”, pediu. Nada feito.
"Meu caso não envolve morte, mas não é simples", lamentou Jorge* ao deixar a 5ª DP na tarde de quinta (9). Cerca de dois minutos antes, ele havia entrado na unidade para tentar denunciar um crime virtual contra ele. O policial que estava no balcão ouviu a versão resumida de sua história e logo entregou um pequeno pedaço de papel cortado com o endereço eletrônico para que ele registrasse o caso na internet.
Espera na cena do crime
Eram 3h30 da madrugada de quarta-feira (8) quando um homem arrombou o portão de um prédio no Engenho Novo, zona norte do Rio. Depois de explorar o local e danificar o acesso à garagem, roubou duas bicicletas --as mais novas do estacionamento. Deixou o edifício 37 minutos depois com o produto do roubo.
Toda a ação foi filmada e descoberta ao amanhecer, quando o marido da advogada Iolanda Pereira, 65, saiu para levar o neto do casal à parada do ônibus escolar, na frente do prédio. “Ligamos para a Polícia Militar e perguntaram se teve gente morta e se o ladrão ainda estava aqui. E então falaram que não viriam e que deveríamos chamar a Polícia Civil. Quando ligamos para a delegacia (25ª, do Engenho Novo), disseram que não viriam por causa da greve”, relatou Iolanda, horas depois.
A advogada, que não sabia da greve dos policiais civis, já havia alertado os vizinhos a não tocar em nada na cena do crime. “Vimos pelas imagens da câmera que ele tocou em vários lugares, então as impressões digitais dele estavam lá”, explicou. Ela ainda insistiu durante cerca de dez horas que o local fosse preservado, até ser convencida a seguir a orientação da polícia --registrar a ocorrência na internet.
“Que ótimo. E agora? Fazemos o quê? A gente se sente totalmente inseguro. À mercê da própria sorte. O Rio de Janeiro está entregue. Estamos completamente desamparados. Você pensa que esses ladrões não fazem isso sabendo que ninguém vai investigar? Claro que sabem”, declarou.
Greve
Apesar dos transtornos para parte da população, após quase dois meses de greve, a avaliação entre policiais civis ouvidos pelo UOL sob anonimato é de que o movimento tem sido pouco efetivo. "Greve, se você não fizer mal a alguém, se não houver pressão, não adianta. O governo não liga para a gente”, opinou um inspetor.
Mais diplomático, o presidente do Sindpol (Sindicato dos Policiais Civis do Estado do Rio), Marcio Garcia, diz que a restrição nos serviços “é o mínimo que os policiais podem fazer para chamar atenção”. "Os policiais, na verdade, não querem continuar a greve. Não é agradável, mas o governo tem que se posicionar", declarou.
Até o momento, o governador Luiz Fernando Pezão (PMDB) não recebeu líderes da categoria, como pedem os policiais. A reportagem solicitou à assessoria do governador um posicionamento dele sobre o assunto, mas foi informada que apenas a Polícia Civil falaria da greve. Na última terça (7), o chefe da instituição, Carlos Leba, se reuniu com representantes das entidades de classe e disse respeitar o movimento.
Segundo a assessoria da polícia, Leba tem se esforçado junto ao governo para tentar regularizar os salários "o mais rapidamente possível", e tem tido "a promessa do governo de empenho para que isso aconteça". "Não é só o salário da categoria. O chefe também recebe com atraso", informou.
Por conta da crise financeira que levou o Estado a decretar estado de calamidade, em junho do ano passado, os salários do funcionalismo público estão atrasados e foram parcelados. O 13º salário ainda não foi pago --e não há previsão. Esta semana, o governo depositou o valor das horas extras realizadas durante os Jogos Olímpicos, em agosto de 2016, para os policiais civis.
Mas a regularização dos salários não é única reivindicação da categoria. "A gente chegou num ponto que não conseguimos mais trabalhar direito. É um caos generalizado. As delegacias e o IML estão sucateados. Falta manutenção e até papel para as impressoras, quando funcionam. Os carros estão em estado precário. A Polícia Civil do Rio está em colapso”, declarou Garcia.
*Os nomes foram trocados para não identificar as vítimas
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