Especialistas veem bom senso em metas de Doria, mas lacunas no combate à desigualdade
Lançado no último dia 30, o plano de metas da administração João Doria (PSDB) para a cidade de São Paulo contém objetivos a serem atingidos até o fim do mandato, em 2020. Na avaliação de especialistas, há metas importantes e bom nível técnico, mas também lacunas, como a falta de metas regionalizadas, correndo o risco de reforçar as desigualdades na cidade. Em entrevista ao UOL, o secretário de Gestão da prefeitura, Paulo Uebel, afirmou que a versão final do plano terá metas regionalizadas.
As 50 metas do plano se dividem em cinco eixos de desenvolvimento: social, humano, urbano e ambiental, econômico e gestão e institucional (clique aqui e veja as metas na página da prefeitura). A população pode propor mudanças e acrescentar sugestões em audiências públicas realizadas durante este mês. A prefeitura deve concluir a versão definitiva do plano até o fim do semestre.
Para Jorge Abraão, coordenador da organização não governamental Rede Nossa São Paulo, o “plano apresenta bom nível técnico, tem eixos, projetos e linhas de ação”. “Além disso, integra-se aos objetivos de desenvolvimento sustentável da ONU (Organização das Nações Unidas). Isso é interessante.”
Ele aponta, no entanto, fragilidades como a falta de regionalização das metas e a timidez na ampliação de equipamentos. “O plano não regionaliza as metas. Dessa forma, a gente perde a chance de ver onde o plano vai atuar, se vai resolver carências e desigualdades entre os cidadãos e entre os bairros. Não se sabe onde as ações serão executadas. O plano corre o risco de manter ou ampliar as desigualdades”, ressalta Abraão.
“É também tímido no quesito ampliação de equipamentos. Ele fala do aumento do potencial dos equipamentos instalados. Não há como criticar a melhora da eficiência, mas, se não criar equipamentos, haverá distritos que continuarão zerados em termos de biblioteca e lazer esportivo, por exemplo.”
Criada em 2007 e inspirada em um movimento de Bogotá, capital da Colômbia, a Rede Nossa São Paulo iniciou a mobilização para que a capital paulista adotasse em lei o sistema de metas por gestão. São Paulo aprovou a norma em 2008 e foi seguida por 49 cidades brasileiras, que também adotaram o sistema.
O médico Stephan Sperling, vinculado à FMUSP (Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo), também defende a descentralização e a regionalização da gestão como forma de atender às demandas de cada território.
Veja abaixo o que especialistas ouvidos pela reportagem comentaram a respeito de três áreas: educação, saúde e desenvolvimento urbano.
Educação
Nessa área, a gestão de Doria relaciona dez metas. A prefeitura projeta, por exemplo, “expandir em 30% as vagas de creche, de forma a alcançar 60% da taxa de atendimento de crianças de 0 a 3 anos”.
Havia, no fim de 2016, 66 mil crianças na fila de espera por uma vaga em creche, segundo a própria prefeitura. “A meta está correta”, diz Priscila Cruz, presidente executiva da organização Todos pela Educação. A idade até três anos é considerada decisiva para o bom desenvolvimento da criança. “Mas senti falta de instrumentos de avaliação da qualidade da oferta.”
Outro objetivo da gestão diz respeito à melhoria do desempenho dos alunos da rede: “Atingir Ideb de 6,5 nos anos iniciais e 5,8 nos anos finais do ensino fundamental”, descreve a meta do plano.
Em 2015, os alunos do fundamental 1 da rede municipal (1º ao 5º ano) progrediram no Ideb (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica), que mede a qualidade do aprendizado no país, alcançando 5,8 pontos. Mas o desempenho dos alunos do fundamental 2 (6º ao 9º ano) caiu para 4,3, um ponto abaixo da meta fixada pela gestão anterior, de Fernando Haddad (PT).
Para a dirigente da Todos pela Educação, a meta de 6,5 para o fundamental 1 “é factível”, mas a meta para o fundamental 2 “é bem desafiadora”. “O fundamental 2 não tem tido muito sucesso no Brasil como um todo. Precisamos de um novo modelo de gestão para alcançar essa meta.”
CEUs e alfabetização
Quanto aos CEUs (Centros Educacionais Unificados), a prefeitura estabelece que todos os 46 estabelecimentos serão “transformados em polos de inovação em tecnologias educacionais e práticas pedagógicas”. A executiva do Todos pela Educação é reticente: “A ênfase foi exagerada em tecnologia. Os CEUs são muito mais do que isso, eles são o centro da comunidade”.
Em relação à alfabetização, a prefeitura estipula como meta “95% dos alunos com, no mínimo, nível de proficiência básico na Prova Brasil, nos anos iniciais e finais do ensino fundamental”.
A Prova Brasil compõe a nota final do Ideb e é aplicada em alunos do 5º e 9º anos do ensino fundamental, com questões de língua portuguesa (foco em leitura) e matemática (foco em resolução de problemas). Para Cruz, não ficou claro qual será o parâmetro utilizado pela gestão paulistana para aferir se um aluno saberá de fato ler. “É muito diferente ser alfabetizado de ser plenamente alfabetizado”, pondera. “Poderiam ter definido melhor o que a prefeitura entende por alfabetização.”
E os professores?
Cruz diz ter sentido falta de uma meta clara para o professor, especificando o que a prefeitura projeta e quer para o corpo docente da rede em termos de salário, carreira, formação e condições de trabalho. “É como se a educação existisse sem o professor”, aponta. “Não se tem rede de qualidade sem professor de qualidade.”
Para ela, também falta no plano um direcionamento claro para a articulação com secretarias como as de Cultura, Saúde, Assistência Social e Esporte. “Não é só trabalhar a meta de forma isolada.”
Saúde
A prefeitura estabelece metas como “aumentar a cobertura da atenção primária à saúde para 70% na cidade de São Paulo”, “reduzir em 5% a taxa de mortalidade precoce por doenças crônicas não transmissíveis selecionadas”, “certificar 75% dos estabelecimentos municipais de saúde conforme critérios de qualidade, humanização e segurança do paciente” e “diminuir a taxa de mortalidade infantil em 5%, priorizando regiões com as maiores taxas”.
“O plano encerra diretivas importantes para o fortalecimento do sistema de saúde e parece sensível às necessidades técnicas e políticas da rede municipal. Metas como ampliação do acesso à porta de entrada do sistema --a Atenção Primária à Saúde-- são relevantes. A atenção às doenças crônicas não transmissíveis é, com limitações, um norte razoável para se pensar a revisão da rede municipal”, diz Stephan Sperling, tutor do Programa de Residência Médica em Medicina de Família e Comunidade da FMUSP.
Sperling adverte, porém, que a prevenção, isoladamente, não será “responsável pela superação das inúmeras iniquidades e contradições presentes no cuidado das pessoas”. Ele considera “extremamente negativa a possibilidade de formação de equipes de Atenção Primária por especialistas (como pediatras e ginecologistas)”. “O profissional formado e especializado para atender às demandas da Atenção Primária à Saúde e, assim, atuar como guardião da porta de entrada do sistema é o generalista ou médico de família e comunidade.”
E o setor privado?
Defensor do sistema público e gratuito, o médico vê com apreensão a falta de previsão da participação do setor privado em um momento de crise econômica. “Um gestor não pode ignorar e deixar de prever a participação do setor privado na assistência e a necessidade de regulação de sua atuação.” Para ele, as metas deveriam apresentar as justificativas técnicas para as parcerias com a iniciativa privada e projetar as ações dela.
Sperling avalia que o plano carece de propostas de gestão descentralizada e regionalizada. Além disso, ele diz que o plano não indica novas formas de repensar a integração com a rede estadual, administrada pelo governador Geraldo Alckmin (PSDB), padrinho político do prefeito.
Ele também demonstra preocupação com a ausência de referência à consolidação da integração da rede com as universidades. “Não há nenhuma meta, igualmente, dialogando com as contradições a que as trabalhadoras e os trabalhadores de saúde estão sujeitos em seus locais de trabalho e sob os diversos regimes contratuais a que estão impostos. O plano não aborda o cuidado com os trabalhadores, expostos a situações de violência institucionalizada ou a assédios em seus processos de trabalho.”
Desenvolvimento urbano
Na área de desenvolvimento urbano, o plano coloca metas como “reduzir o índice de mortes no trânsito para valor igual ou inferior a 6 a cada 100 mil habitantes/ano”, “aumentar em 10% a participação da mobilidade ativa” e “aumentar em 7% o uso do transporte público”.
“São todas metas de bom senso e que já estão na pauta da cidade, mas a lista não traz algumas questões contundentes de que a cidade vem precisando há algum tempo”, afirma Valter Caldana, professor do curso de arquitetura e urbanismo da Universidade Mackenzie e membro do Conselho Municipal de Políticas Públicas.
Caldana entende que a prefeitura falha ao não colocar a descentralização administrativa como meta e diz que a falta de menção a investimentos em novos parques é uma “ausência importante”.
O professor do Mackenzie também vê com preocupação a meta de “valorização do Centro da cidade de São Paulo, com a implantação de projetos de requalificação urbana”. Para ele, a meta não contempla mudanças de que o Centro necessita.
“Isso tem sido feito nos últimos 20 anos, mas falar em valorização sem falar em retirar o Minhocão e os três terminais de ônibus (Parque Dom Pedro, Bandeira e Princesa Isabel) do Centro é postergar a adoção de soluções estruturais para a região e manter soluções paliativas. Os terminais de ônibus são entraves, barreiras muito fortes.”
Metas diferentes em habitação
Em relação à habitação, a prefeitura fala em entregar 25 mil casas se contar com verbas dos governos estadual e federal e reduz a meta para 6.600 caso conte apenas com recursos próprios. O beneficiado poderia comprar o imóvel ou ter acesso a ele por um programa de locação social.
A colocação de metas diferentes de acordo com a disponibilidade de verbas também acontece em relação à intervenção em assentamentos precários, como as favelas. A prefeitura promete beneficiar 27,5 mil famílias se contar com investimentos estaduais e federais e baixa a meta para 14,1 mil se tiver somente verbas próprias.
“As questões ligadas à habitação continuam dependentes de financiamento externo. Isso fragiliza a política habitacional do município”, diz Caldana. “O lado positivo é a locação social ser colocada em pé de igualdade com a aquisição de imóveis. A prefeitura reconhece a locação social como mecanismo de agilização de atendimento do deficit habitacional.”
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