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Denúncia de ritual de exorcismo põe grupo católico brasileiro na mira do Vaticano

Monsenhor João Scognamiglio Clá Dias, ex-líder dos Arautos do Evangelho, realiza ritual - Reprodução
Monsenhor João Scognamiglio Clá Dias, ex-líder dos Arautos do Evangelho, realiza ritual Imagem: Reprodução

Aiuri Rebello

Do UOL, em São Paulo

22/06/2017 04h00

Uma série de vídeos que apresentam rituais de exorcismo e reuniões para discutir conversas de padres com o que seriam "demônios" incorporados em fiéis colocaram o grupo religioso católico brasileiro Arautos do Evangelho sob escrutínio do Vaticano.

O UOL teve acesso a nove vídeos gravados por integrantes do grupo há cerca de um ano e meio e que foram compartilhados fora do grupo neste ano. Nestas gravações, há cenas de um monsenhor falando em latim e realizando um ritual que seria para tirar o que ele chama de demônio do corpo de duas adolescentes. Em outro, um membro dos Arautos lê um relatório que narra o diálogo entre um padre e um "demônio" que estaria incorporado em uma mulher.

Fiéis católicos denunciaram ao Vaticano a prática de rituais não condizentes com os dogmas católicos. A organização Arautos do Evangelho é um grupo subordinado ao Vaticano e surgido de uma dissidência da TFP (Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade) nos anos 90. Eles negam qualquer prática que não seja autorizada pela hierarquia eclesiástica da Igreja Católica (leia mais abaixo).

De acordo com o monsenhor José Correa, chanceler da Diocese de Bragança Paulista (interior de SP), região administrativa da Igreja Católica onde fica a principal casa dos Arautos, diversas denúncias acompanhadas dos vídeos chegaram ao conhecimento do bispo Dom Sérgio Aparecido Colombo, responsável pela diocese, em meados de abril, e foram remetidas para o Vaticano.

O bispo Colombo emitiu comunicado no início de maio afirmando que nenhuma pessoa na região da Diocese possui autorização da Igreja Católica para fazer rituais de exorcismo canônico, uma prática litúrgica rara, mas oficial da Igreja Católica, que depende de formação e autorização específicas. Hoje o Brasil possui cerca de 30 padres autorizados a realizar rituais de exorcismo oficialmente, de acordo com as regras do Direito Canônico.

"O bispo convocou representantes dos Arautos, que negaram qualquer prática irregular", afirma Correa. Segundo ele, foi recomendada "moderação" ao grupo. Além disso, as denúncias com os vídeos, o alerta do bispo e as respostas dos Arautos foram encaminhados para a Nunciatura Apostólica no Brasil (representação do Vaticano no país), que mandou o material para o Vaticano, em Roma.

O caso foi revelado na semana passada pelo projeto "Vaticano Insider", do jornal italiano "La Stampa". Se for levado adiante pela congregação, em última instância pode provocar uma "visita apostólica", ou seja, quando uma comissão do Vaticano vai a algum lugar fazer uma investigação mais aprofundada.

O que mostram os vídeos?

20.jun.2017 - Monsenhor João Scognamiglio Clá Dias, ex-líder dos Arautos do Evangelho, realiza ritual para libertar de suposta possessão jovem fiel do grupo - Reprodução - Reprodução
Imagem: Reprodução

Em dois dos vídeos que provocaram a polêmica, jovens do sexo feminino participam de um ritual comandado pelo monsenhor João Scognamiglio Clá Dias. Nas imagens, as jovens, vestidas com a túnica característica do grupo, são tratadas como se estivessem possuídas por demônios. Ao final do ritual, é assumido por eles que foram curadas. É possível ver Dias lendo orações em latim e dando tapas diversas vezes na cabeça e no rosto das jovens atormentadas, na maioria das vezes com folhas de papel.

Em outros dois vídeos, o líder dos Arautos discute em uma reunião privada com outros membros supostas conversas que padres ligados ao grupo teriam tido com demônios (termo usado por eles) incorporados em fiéis durante rituais que não são mostrados. 

Em uma das reuniões filmadas, é dito que monsenhor Dias exorcizou uma jovem ao final de uma missa, na medida em que ela apresentaria sinais de estar possuída. Em meio ao ritual, segundo conta um integrante dos Arautos em vídeo, "o demônio teria feito revelações ao padre", por meio da jovem que eles chamam de X durante a discussão. Insatisfeitos com o conteúdo das revelações, os Arautos teriam chamado X novamente e "invocado" o que seria este demônio de volta a ela, "para explicar melhor" o que havia dito antes. "Este é o demônio mais capaz que já resistiu entre nós", diz o monsenhor Dias durante a discussão gravada.

Em outra reunião filmada, o grupo discute um relatório feito por um padre sobre o que ele teria "ouvido de um demônio". Na leitura do documento, feita a um grupo de membros dos Arautos, é mencionado um episódio que fala da morte do papa Francisco. 

"Para nós, este é um assunto encerrado"

Em meio à polêmica, o líder máximo do grupo, monsenhor João Scognamiglio Clá Dias, renunciou. De acordo com o padre Alex Barbosa de Brito, representante dos Arautos, o afastamento de Dias nada teve a ver com o caso dos vídeos e já vinha sendo considerado por ele havia pelo menos dois anos.

"Ele comunicou o conselho em 28 de abril, bem antes da reunião na Diocese de Bragança e o comunicado do bispo", diz padre Alex. "Não há polêmica, não há investigação, o que existe são pessoas que não gostam da gente e ficam inventando histórias para tentar nos prejudicar. Já esclarecemos tudo ao bispo e para nós este é um assunto encerrado."

Segundo um representante dos Arautos, padre Alex, os vídeos que parecem registrar rituais de exorcismo na verdade são uma bênção de libertação, que qualquer padre pode dar a qualquer fiel que peça isso a ele."

O UOL procurou o padre Valeriano dos Santos da Costa, diretor da Faculdade de Teologia da PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo) para falar sobre o assunto. "Fiquei sabendo da história mas não vou opinar", diz o padre. "Uma bênção de libertação pode ser muitas coisas, mas não conheço os detalhes da história."

Plinio Correa de Oliveira - Frederic Jean - 8.fev.1993/Folhapress - Frederic Jean - 8.fev.1993/Folhapress
Plínio Correa de Oliveira, em foto de 1993
Imagem: Frederic Jean - 8.fev.1993/Folhapress
Os Arautos do Evangelho são um grupo oficialmente ligado à Igreja Católica que nasceu de uma ruptura no seio da TFP (Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade) após a morte do fundador Plínio Correa de Oliveira, em 1995. De acordo com a CNBB, trata-se de uma Associação Internacional de Fiéis de Direito Pontifício. Fundada em 1960, a TFP era um grupo católico da sociedade civil ultraconservador de direita que promovia marchas e protestos contra a reforma agrária, entre outros temas, nas décadas de 1980 e 1990. Neste século, perdeu protagonismo e membros para os Arautos.

Registros são bênçãos de libertação, diz padre dos Arautos

Segundo padre Alex, dos Arautos do Evangelho, o que os vídeos apresentam não são rituais de exorcismo. "Não é um exorcismo canônico, é um ato reservado e particular que qualquer padre pode conceder a qualquer fiel que assim pedir", afirma o padre. "São bênçãos de libertação privadas e solicitadas por quem recebe", afirma.

Sobre as reuniões onde são discutidas supostas conversar de padres dos Arautos com o que eles chamam de demônios, ele explica que foram retiradas do contexto e que os Arautos vão processar os responsáveis pela divulgação das imagens.

"Não implicou nenhuma mudança de rumos nos Arautos do Evangelho, seja em seu relacionamento para com a Sagrada Hierarquia e a sociedade civil, seja na atuação com a imensa quantidade de aderentes do movimento. O objetivo do encontro registrado era, simplesmente, intercambiar impressões a respeito de determinados fenômenos preternaturais, num ambiente de amena e distendida intimidade", diz o padre Alex.

Segundo ele, o grupo concluiu depois que as "revelações" não eram verdadeiras. "Muitas vezes estes fenômenos têm explicações psiquiátricas, não eram uma possessão de verdade, outras são uma informação falsa dos demônios, que tentam nos enganar a todo momento."

Argentino fez denúncias ao Vaticano e à Diocese de Bragança

Um dos fiéis católicos que denunciou os Arautos do Evangelho à Diocese de Bragança e ao Vaticano é o gerente de projetos argentino Alfonso Beccar Varela, 53. Varela é ex-integrante da TFP. "É uma instituição da igreja que tem crenças muito estranhas e que se alegra contemplando a hipótese da morte de papa, assim como uma visão apocalíptica da realidade", diz Varela. "Fiz a denúncia por que considero um perigo para a Santa Sé, e os católicos em geral, um grupo ter práticas como essas."

Segundo dados deles mesmos, os Arautos do Evangelho estão hoje presentes em 78 países e contam com cerca de 200 sacerdotes. No total, são 50.557 pessoas entre homens, mulheres e "terciários" (que não fazem parte do grupo, mas de alguma forma "orbitam" ao redor dele).

Quando Plínio Corrêa (o fundador da TFP) morreu, em 1995, houve uma cisão entre dois grupos da organização, que disputam até hoje na Justiça quem tem direito ao nome e aos bens da TFP --o caso começou em 1997 e hoje está no STF (Supremo Tribunal Federal). Enquanto a TFP minguava em meio à disputa judicial, os Arautos cresciam.

Basílica dos Arautos - Lalo de Almeida/Folhapress - Lalo de Almeida/Folhapress
A Basílica Nossa Senhora do Rosário, na serra da Cantareira, que pertence aos Arautos
Imagem: Lalo de Almeida/Folhapress
Recentemente, os Arautos do Evangelho protagonizaram outra polêmica. Em 2008, inauguraram uma basílica de 60 metros de altura em um terreno de 96 mil metros quadrados na serra da Cantareira, em Caieiras, na Grande São Paulo. Moradores da região questionam o tamanho da obra em área de mata, mas os Arautos conseguiram todas as licenças necessárias para a construção.

O que acontece agora

"O prefeito da Congregação, cardeal Braz de Aviz, está realizando um inquérito", afirma o vaticanista (estudioso especializado na Igreja Católica) Andrea Tornielli, em entrevista ao UOL. O italiano foi o responsável pela revelação na imprensa da história.

"Até agora não foi feito nenhum pronunciamento sobre a alguma decisão oficial sobre o caso. Mas fontes seguras no Vaticano confirmam tudo e a Santa Sé não se pronuncia, mas também não nega nada", afirma o jornalista. "É difícil saber no que vai dar, por que o inquérito acabou de começar. Neste tipo de caso a visita apostólica costuma ser mais frequente, mas é difícil saber ainda."

Agora, cabe à Congregação para os Institutos de Vida Consagrada, entidade com sede no Vaticano que é comandada pelo cardeal brasileiro Braz de Aviz, decidir se vai levar uma investigação adiante ou não. Ainda não foi divulgada nenhuma decisão sobre o caso. "Não cabe a nós decidir nada, apenas passamos para o Vaticano o que estava acontecendo para eles decidirem se há algo a ser feito", diz Correa.

A CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) diz, por meio de sua assessoria de imprensa, que tomou conhecimento da polêmica e que o assunto foi incluído na pauta da reunião do Conselho Permanente que acontece até esta quinta (22).

Procurados pela reportagem para comentar o assunto, representantes da Nunciatura no Brasil não responderam aos telefonemas nem aos pedidos por e-mail. Também foram procurados o cardeal Braz ou algum representante da Congregação para os Institutos de Vida Consagrada, sem sucesso.