Protetor solar, carro com película escura: nasceu uma flor albina na periferia de São Paulo
A menininha desta história mora numa terra muito, muito longe. Quer dizer, longe pode ser o lugar onde a gente mora, e não ela, afinal, é tudo uma questão de referencial. Ela tem um nome que veio lá do Oriente, que designa uma flor bonita e clara reconhecida pelo perfume bom. Ela se chama Yasmim, que significa jasmim.
Esse lugar tão, tão distante, ou tão, tão perto, é a Vila Curuçá Velha, bairro pobre na pontinha do extremo da zona leste da cidade de São Paulo, a cerca de 25 km do centro, um trajeto que supera facilmente duas horas a depender do trânsito.
A Vila Curuçá Velha, no distrito de Vila Curuçá, antigamente era feita quase exclusivamente de chácaras. A família de Yasmim é testemunha, pois vive há décadas por ali. Com o tempo, a região começou a ser ocupada por migrantes principalmente vindos do Nordeste brasileiro, por isso uma das principais avenidas da região se chama Nordestina.
É um lugar meio esquecido pelos governantes, quase sem saneamento básico e onde o rendimento médio do morador é de menos de R$ 500 mensais (segundo o Censo do IBGE), condição agravada agora com a alta do desemprego.
Ali, muitos jovens, espalhados pelas ruas e sem ter muito para onde ir, fazem cara de mau quando a gente que é de fora passa (porque por ali geralmente só passa a polícia, a repressão) para mostrar que, sim, eles existem e têm dignidade.
Quando a menininha dessa história nasceu, no dia 26 de novembro de 2008, o hospital geral da região entrou em festa. Médicos e enfermeiros armaram comemoração por ela, pois Yasmim era um caso único ali.
Que pele mais branquinha ela tinha! Que olhos azuis mais bonitinhos! Que coisa mais fofa! Yasmim foi o primeiro bebê com uma deficiência genética pouco comum, chamada de albinismo, a nascer ali. A menina, filha do porteiro Flávio e da auxiliar de limpeza Mariana, gente pobre e simples, era um fato médico-hospitalar inédito.
Para os pais, a chegada de Yasmim era uma bênção, como o nascimento de um filho deve ser, mas o albinismo não era assim motivo de celebração, não. Ergue muros, muitos muros, embora invisíveis, deixando a gente sempre à sombra de verdade. É que a ausência total (ou quase) de melanina que caracteriza o albinismo --a melanina é a proteína que responde pela coloração e proteção da pele, dos pelos, dos cabelos e dos olhos-- traz restrições severas.
O sol que nos aquece e ilumina é, antes de tudo, uma ameaça até de morte para a pessoa com albinismo, porque, sem a proteção natural da pele, pode queimá-la facilmente e lhe fazer nascer um câncer. Sem falar nos problemas de visão que desencadeia, levando muitas vezes à cegueira (saiba mais abaixo).
O albinismo outra vez na mesma família
Na família Ventura, que é o nome da família do lado da mãe de Yasmim, o albinismo não é obra do Destino com D maiúsculo, pois já era fato bem conhecido de seus integrantes: três tios de Mariana haviam nascido com a deficiência. Uma tia morreu muito cedo, mas Cláudio e Vera Lúcia testemunharam para todos.
Cláudio morreu aos 65 anos, de AVC (acidente vascular cerebral), mas Vera Lúcia, aos 61 anos, está aqui à frente, com seu vestido de algodão verde-musgo, sorrindo, com certa dificuldade de locomoção e muita de visão (onde estão os óculos, Vera Lúcia? Ela se ataranta e muitas vezes não os encontra) e com algumas lesões na pele alva, encarquilhada e um tanto áspera.
A história se repetia na família, pulando uma geração, muito embora Mariana Angélica Aparecida Ventura, 33, e Flávio Augusto Garcia, 41, não tivessem albinismo, apenas o gene recessivo que o provoca.
"Eu era mãe de primeira viagem e não sabia de nada", recorda Mariana o nascimento da primeira filha. A dificuldade inicial só conseguiu contornar com o apoio da família e da "expertise" no mundo albino. A figura da mãe, Amália Ventura, uma mulher morena, firme e sorridente, se destaca. "Ela me deu força."
A propósito, Yasmim viveu, e ainda vive, grande parte do dia (e também da noite) na casa da avó, próximo de onde mora, e lá faz muitas das refeições. Afinal, Mariana precisava trabalhar fora e ajudar o Flávio com o sustento.
Mas Mariana, auxiliar de limpeza, está desempregada desde o dia 19 de setembro do ano passado, quando retornou da licença-maternidade. Pois é: no dia 27 de abril de 2016 veio à luz a Karolina, a irmãzinha da Yasmim. E ela era alvinha, tão bonitinha, igualzinha à outra.
Na hora do segundo parto, quando tudo se confirmou, não pôde evitar a preocupação: "Mais uma?! Tudo de novo?! Os cuidados e os gastos com o protetor, os óculos... Mas Deus sabe de tudo". Foi o que disse de si para si na hora do parto.
Um salário mínimo, quatro pessoas
A última parcela do seguro-desemprego de Mariana foi paga em abril último. Desde então, a família vive exclusivamente do salário mínimo (R$ 937) que o marido recebe como porteiro folguista (que cobre folgas de outros porteiros, tendo, por isso, horário de jornada que varia de um dia para o outro) de um edifício residencial no bairro do Jaçanã, na zona norte da capital paulista.
A família não rejeita doações nem ajuda, como alguns frascos de protetor solar de fatores elevados, que são caros, mas insumo de primeira necessidade para eles, como o alimento.
Parte dos eletrodomésticos que se alteiam entre os três cômodos daquela casa simples da rua Água Vermelha, 8F, entre elas uma geladeira parcialmente enferrujada, veio de doações. Assim como também veio a máquina de lavar, que já chegou quebrada e cujo conserto não compensou. Mariana lava as roupas de todos no braço, no tanque, e depois pendura na laje.
O dinheiro curto para uma família de quatro pessoas fica ainda menor devido ao aluguel longo: R$ 600 pela casa mais R$ 50 pela vaga da garagem. Há ainda as contas de água e de luz a pagar.
O automóvel Palio da cor prata, ano 2005, não foi luxo incorporado ao dia a dia da família Ventura Garcia, mas obrigação: para não comprometer a saúde e a pele frágil das duas crianças. Flávio ainda aplicou uma película escura nos vidros do veículo para protegê-las do amedrontador sol.
"A gente tem de cuidar com carinho. Aonde a gente vai, passa protetor nelas. É protetor de manhã, de tarde e de noite", ressalta Flávio, um sujeito simpático, de pele muito escura e cabeça raspada diligentemente toda semana, contrastando com a alvura das filhas. Karolina não quer de jeito nenhum sair agora do colo dele, que acabou de chegar da rua.
"Hoje, o que não tive tento oferecer para as meninas", confirma Mariana. "Mesmo apertada, a gente faz festa de aniversário todo ano, nunca falhou. Pode não ser assim um festão, mas pelo menos um bolinho faço. Faço de tudo para elas."
O Patinho Feio era cisne desde o nascimento
Yasmim Ketllyn Ventura Garcia, hoje com 8 anos, e Karolina Vitória Ventura Garcia, com 1 ano e quase dois meses, dividem o único quarto da casa de três cômodos grandes com os pais. O berço da Karolina fica do lado da cama do casal, e a cama da Yasmim fica junto da parede oposta à porta de entrada, ao lado da janela, que costuma ficar fechada quando as meninas estão por ali.
Muitas bonecas e brinquedos, quase sempre rosa, recobrem a cama de Yasmim. Uma boneca branca e uma boneca negra são suas favoritas, na brincadeira de mamãe e filhinha de que diz tanto gostar.
A construção onde vivem se subdivide em cinco casas, para cinco famílias. São duas maiores no térreo, uma de cada lado do corredor, e uma bem pequena ao fundo; no andar de cima, por onde se vai por uma escada em espiral, está a casa da família de Yasmim, do lado direito de quem olha para a rua, através do emaranhado de fios elétricos, e há uma outra ao fundo. Uma haste de madeira na laje, que virou quintal, divide o território.
É na porção sombreada da laje, protegidas do sol intenso desta manhã, sobre o piso feito de cacos de cerâmica, que as meninas brincam. Karolina, de cabelo alaranjado e crespo, ora engatinha, ora executa seus primeiros passos no mundo. Já sobe pelas camas, sofás e gosta mesmo é do colo gostoso do papai. Quando toca uma música (o funk é o ritmo preferido das irmãs), Karolina já se sacode, sorrindo, os olhos azuizinhos.
Desde março, Yasmim ostenta feliz o aplique de tranças claras que ganhou no cabelo. Já está pronta para a escola, de camiseta clara e calça comprida. Ela cursa o 3º ano C do turno da tarde na EMEF (Escola Municipal de Ensino Fundamental) Almirante Pedro de Frontin, que fica no vizinho Jardim São Vicente. Sentada sempre na primeira fileira da sala, para poder ver a lição na lousa, vai bem nos estudos e tem predileção pelo inglês. Amarelo? "Yellow!" Chocolate? "É igual."
Ela agora nos chama para mostrar sua habilidade corporal: e no quarto abre espacate, alongando inteiramente as pernas. Faz ginástica olímpica? "Ela gosta mesmo é de balé", conta Cauane, 11, a prima que está sempre por ali e é uma das melhores amigas de Yasmim.
Yasmim está envergonhada. Fala com voz fininha, sem olhar para o interlocutor. É consciente de sua condição de garota com albinismo, que de certo modo a diferencia da situação de outras meninas e meninos de sua idade. Não conta, ou conta só dias depois, possíveis problemas com que topa no seu dia a dia, talvez oriundos de sua constituição.
"Às vezes ninguém brinca comigo", diz num fiapo de voz, os olhos azuis miúdos por detrás dos óculos de grau com lentes fotossensíveis para a miopia, balançando as tranças, para não seguir adiante com o assunto.
Dos livros de histórias, o seu favorito é "O Patinho Feio", fábula sobre rejeição, transformação e redenção do escritor Hans Christian Andersen, que leu na escola, colando os olhos bem pertinho do Patinho Feio, como sempre faz para poder ler as letras e mexer no celular da mãe.
Yasmim começa a recontar a história do patinho que era rejeitado por sua suposta feiura, mas que no fim descobriu ser um lindo cisne, motivo da admiração geral, e conclui por que tanto gosta dela: "Porque quando ele cresceu ele ficou bonito".
No futuro, quando for grande, promete ajudar o mundo como veterinária, advogada e professora, as profissões que sonha em ter, tudo junto. O futuro dela tem sabor: de um delicioso bolo de cenoura com cobertura de chocolate, sua comida favorita.
E medo, tem de alguma coisa? "Não, não tenho medo de nada", diz, rápido, com firmeza. Mas a mãe se lembra do medo do escuro e de rato que a filha tem. #quemnunca
"Eu nasci assim e tem de ser assim"
Da edícula no fundo da casa da avó de Yasmim, onde mora com o irmão, a tia-avó Vera Lúcia Ventura, 61, rememora o passado, talvez o presente, como alvo de discriminação.
"Os outros da rua me chamavam de branquela, de nega-aça. Agora não estou mais ligando para o que os outros falam. Agora sou mais esperta. Eu nasci assim e tem de ser assim. Quem não gosta da minha cor não sabe. Minha pela é bonita, como a sua é, a dele, a do meu irmão. Gosto da cor de todo mundo, do preto, do branco. Não tenho preconceito de gente, não. Gosto de todo tipo. Só porque sou branca acham que eu não sou gente, mas eu sou gente. Quem liga para a cor da pele dos outros é preconceituoso, eu não sou", assegura, compreensiva.
Agora nos faz um reparo: "Só não me chama de senhora, não, viu? Sou moça solteira, sou senhorita. Nunca casei. Apareceu homem interessado, eu é que não quis. Se casasse, não ia poder ir a qualquer lugar quando quisesse".
Da bagunça organizada sobre sua cama, Vera Lúcia retira o frasco de plástico transparente cheio de paçoquinhas de amendoim retangulares que comercializa e agora oferece generosamente a nós visitantes, como cortesia.
Tem outra doçura o doce que foi presenteado por aquelas mãos tão branquinhas e enrugadinhas pela ação do tempo, do albinismo, da vida dura.
Entenda o problema de Yasmim, Karolina e Vera Lúcia
O albinismo é uma desordem genética provocada pela mudança de um gene (unidade fundamental da hereditariedade) envolvido na produção de melanina, a proteína responsável pela cor da pele, dos pelos, do cabelo e da formação e da cor dos olhos, explica a dermatologista Carolina Marçon, coordenadora do programa Pró-Albino, da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo.
É uma deficiência herdada simultaneamente do pai e da mãe, que podem ou não ter albinismo. Normalmente associada a descendentes de indivíduos negros, mas também verificada em brancos. A deficiência não pega, porque não é contagiosa.
Acontece que o organismo de quem tem albinismo ou não produz melanina ou o faz em baixíssima quantidade, daí a extrema cor clara da pele, dos pelos, do cabelo e até dos olhos. A falta de melanina leva a maioria desses indivíduos a apresentar problemas graves de visão, sendo muitos considerados "legalmente cegos".
Sem a proteção da melanina, tornam-se severamente sensíveis à luz e à exposição solar, queimando-se e podendo ser vítimas de câncer facilmente. Aliás, o câncer de pele é a principal causa da morte dessas pessoas que têm albinismo, e há registros de doentes com câncer já aos 20 anos.
Por isso, no dia a dia dessas pessoas, são obrigatórias medidas protetivas, como o uso de roupas especiais com filtro solar e de loções protetoras.
As roupas amigáveis são fabricadas com tecidos de tramas especiais, mais fechadas (poliamida, principalmente, e também poliéster), embebidas em óxido de zinco e dióxido de titânio, substâncias que protegem contra a radiação ultravioleta. Chapéu e roupas com mangas longas são recomendados.
O uso do protetor solar com fatores elevados (como o 70) deve ser uma constante nas partes do corpo que ficam mais expostas, como o rosto e as mãos. Segundo Carolina Marçon, a aplicação deve ser feita de duas em duas horas. "Precisa aplicar e reaplicar a loção ao longo do dia, porque ela se torna instável ao contato com a pele ao longo das horas."
Também se recomenda o uso regular de óculos com lentes escuras ou fotossensíveis (que escurecem conforme a quantidade de luz presente nos ambientes).
No Brasil, onde não há dados concretos sobre o número de pessoas com albinismo (no Censo do IBGE, por exemplo, não há opção para a pessoa se identificar como portadora de albinismo), estima-se que esse grupo some 10 mil indivíduos (baseado na projeção de 1 pessoa com albinismo para cada 10 mil nascimentos).
No mundo, a incidência da desordem varia muito: a média é de 1 para cada 20 mil nascimentos, mas pode chegar perto de 1 a cada mil nascimentos, que é o caso da Tanzânia, país do leste da África com o maior número de casos.
Na Tanzânia, e em outros países africanos, ter albinismo não exige apenas cuidados dermatológicos e oftalmológicos, mas também policiais. Desde a segunda metade dos anos 2000, o marco é 2008, multiplicaram-se os casos de ataques, mutilações e mesmo assassinatos sobretudo de crianças com albinismo.
Membros, órgãos e sangue dessas crianças transformaram-se num mercado rentável, que serve curandeiros/feiticeiros, contratados por ricos, e com eles preparam poções que se acreditam mágicas. A ONG Under the Same Sun (Sob o mesmo sol), por exemplo, fundada por um empresário canadense que tem albinismo, está protegendo essas crianças, internando-as em escolas seguras e custeando seus estudos.
Um dos programas que auxiliam a população com albinismo no Brasil é o Pró-Albino, da Santa Casa, em São Paulo. Soma 220 pacientes inscritos, sendo 60% crianças --Yasmim e Karolina entre elas.
"De modo geral, a população com albinismo é sofrida. Falta para ela informação e acesso a todos os âmbitos de atendimento, de saúde, psicológico, social. O albinismo é uma doença rara, mas presente no país", contextualiza a médica Marçon, coordenadora do Pró-Albino. "Com pequenas atitudes, a gente consegue mudar completamente o curso de vida dos pacientes. É muito gratificante”, comemora, baseada na experiência de sete anos no programa.
Enquanto caminhamos pelas ruas da Vila Curuçá Velha, a mãe de Yasmim e Karolina vai contando que a informação sobre o albinismo hoje está mais disponível, diferentemente do tempo da tia Vera Lúcia. Mariana participa de grupo de pais de filhos com albinismo no WhatsApp, que traz muita orientação, e sempre que dá espia vídeos sobre o assunto no YouTube. A informação, acredita Mariana, pode superar o preconceito e salvar muitas vidas, mostrando como é irrelevante, superficial, epidérmica de fato, a questão da cor.
Serviço:
Programa Pró-Albino, da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo
Endereço: rua Cesário Motta Jr., 212, Vila Buarque, região central de São Paulo. Tel.: (11) 2176 7000 (ramal 5936)
Atendimento: gratuito, aberto ao público sempre às quartas-feiras, das 9h às 12h
Desde 2015, celebra-se a 13 de junho o Dia Mundial de Conscientização do Albinismo
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