No distrito onde mais se mata na Grande SP, delegacia fecha na sexta e só abre segunda
Casas de alvenaria grudadas umas às outras em que as paredes são muros, e extensos terrenos desocupados, com crianças empinando pipas sob a névoa do inverno à beira da serra da Cantareira. Os bairros que compõe o 9º Distrito Policial de Guarulhos (Grande São Paulo), no Taboão, mantêm a aparência de qualquer um da periferia, mas os números da violência os distinguem dos demais.
Em 2017, não se matou em nenhum outro local da região metropolitana como lá. Mortes no atacado, homicídios bárbaros e crimes passionais compõem a estatística dos 33 homicídios dolosos até maio em uma região de 130 mil habitantes.
Olhando os anos desta década, também nunca se matou tanto. Em todo o ano passado, foram 27 mortos no bairro. No ano com mais registros, em 2012, foram 36 mortes em 12 meses --até maio daquele ano, no entanto, dez homicídios haviam sido registrados na região. Como comparação, a delegacia com mais homicídios dolosos em São Paulo, o 73º DP, no Jaçanã (zona norte), registrou 16 --menos da metade dos que aconteceram no Taboão.
Considerando a média das mortes violentas até o último mês em que a estatística foi levantada pela Secretaria de Segurança Pública do Estado, o índice é de 53 mortes/ano para cada grupo de 100 mil moradores. A violência é epidêmica, de acordo com a ONU, se a taxa exceder a dez mortes violentas por grupo de 100 mil moradores.
O Estado abriu mão de combater o crime. A relação custo-benefício pende para quem quer matar
Rodrigo Merli, promotor de Justiça de Guarulhos
“O Estado abriu mão de combater o crime. Hoje em dia vale a pena matar: 92% dos crimes não são descobertos, e nos outros 8% em que são descobertos a punição é ridícula. A relação custo-benefício pende para quem quer matar”, afirma o promotor de Justiça de Guarulhos Rodrigo Merli.
A delegacia que fecha na sexta
O 9º Distrito Policial, embora seja uma das poucas delegacias de Guarulhos que funcione em imóvel próprio (o prédio foi doado pela prefeitura em 2011), fecha à noite e também aos finais de semana. Quando o expediente é encerrado, na sexta-feira, as ocorrências são encaminhadas para as delegacias de plantão até a reabertura do prédio, na manhã de segunda-feira. “O DP não pode abrir de noite e de fim de semana. Logo, os criminosos fazem o que querem”, diz Merli.
Em um sábado, dia 15 de julho, enquanto a delegacia estava fechada, o ajudante geral Kleber Risio Barbosa, o Caramelo, 35, foi encontrado desmembrado e decapitado a menos de 2 km do DP, no Parque Mikail. O tronco estava em um futuro parque público, no espaço reservado para o bebedouro e de lado para uma quadra de esportes. A cabeça foi encontrada em uma lixeira de uma casa, na mesma rua do espaço esportivo. Braços e pernas foram achados pela rua.
“Ontem me ajudou na rabiola do pipão que iria soltar, apareceu comendo aquele lanche monstrão à tarde, fumou aquele cigarro solto, falou do Timão, falou do cavaquinho e aquela frase antiga: ‘Internet, videocassete, atrasado eu tô um pouco’ [citação da música ‘Negro Drama’, dos Racionais MCs]”, afirmou um amigo na rede social Facebook. Kleber foi enterrado apenas cinco dias depois.
As fotos do corpo desmembrado foram distribuídas por meio do aplicativo de mensagens WhatsApp. Algumas chegaram até a família. A reportagem do UOL tentou conversou com os familiares do rapaz, que preferiram não comentar. A morte ainda não está nas estatísticas da Secretaria de Segurança Pública.
Mesmo com a operação limitada, a delegacia oferece algum tipo de resistência. Policiais ouvidos pela reportagem que pediram que seus nomes não fossem divulgados afirmam que o distrito tem uma boa rede de informantes, embora o número de funcionários seja baixo.
Tem que escolher o que dá mais repercussão
Policial do 9º DP de Guarulhos sobre o volume de inquéritos na delegacia
A estimativa é que 1.500 inquéritos estejam em andamento para um corpo de quatro escrivães e sete investigadores --o que, na média, daria um processo por dia por escrivão e quase um a cada dois dias para um investigador.
“Tem que escolher o que dá mais repercussão”, diz um policial. “Vá até o 9º DP de Guarulhos e veja se aquilo tem cabimento. Veja as instalações e o número de funcionários. Veja o maquinário, as viaturas e o armamento. E veja a população ao redor”, afirma o promotor.
"Tribunal do crime" do PCC por trás das mortes
Das 33 mortes, 12 foram atribuídas a integrantes da facção PCC (Primeiro Comando da Capital), com cinco prisões e o envolvimento de mais duas pessoas já detidas por outros delitos. São os chamados “tribunais do crime”, em que um “disciplina” (espécie de juiz informal do PCC) decide o futuro de quem está sendo julgado. São “penas” aplicadas em locais isolados, como no meio da mata da serra da Cantareira. “O ‘disciplina’ recebe o comunicado da cadeia e faz as vezes de um juiz de tribunal”, diz outro policial.
Em um desses locais, o Recreio São Jorge, a mata é atravessada pelas obras do Rodoanel. No local, não há circulação de pessoas, apenas os operários da construção e trechos de mata cortados por trilhas. Quando as vítimas desses “júris” foram encontradas, estavam amarradas, com as pernas quebradas e enterradas em cova rasa, cobertas por cal para disfarçar o cheiro dos cadáveres.
“O 9º DP tem uma peculiaridade: as informações chegam antes até eles [do que para a Homicídios]”, afirma um investigador da Delegacia de Homicídios. “O informante deles passa para o investigador deles, e é investigado de um lado e de outro. A informação sempre chega à delegacia primeiro.”
A facção também trabalha em uma espécie de “polícia” deturpada. “Um tiozinho que puxou cadeia por estupro começou a mexer com as meninas do bairro. Alguém avisou e ele apareceu morto na mesma rua em que morava”, diz outro policial. “Mesmo quem não concorda com isso, não se intromete. Quem vai delatar o chefe que comanda o tráfico na comunidade? Ninguém é burro.”
Quem vai delatar o chefe que comanda o tráfico na comunidade? Ninguém é burro
Policial ouvido pela reportagem que optou pelo anonimato
“[São] aqueles que sabem que a Justiça não funciona e que querem fazer justiça com as próprias mãos”, diz o promotor Marli. “Resultado: não esperam o Estado agir. Fazem por conta própria, dentre eles os maus policiais que se tornam integrantes de milícias.”
Desemprego e "nordestinos de pavio curto"
Vereador licenciado e secretário de Segurança de Segurança Pública de Guarulhos, Gilvan Passos (PSDB) acredita que problemas fundiários, como a alta taxa de invasões na região, que é protegida por ser área de mananciais (faz parte da reserva da serra da Cantareira), contribuem para o número alto de homicídios.
“Temos dificuldade para entrar na comunidade para fazer um trabalho social. Imagina com segurança? É uma invasão muito grande, e você não tem área para fazer uma praça, porque invadiram tudo. Como o poder público entra lá para fazer um trabalho? Quando chega no fim de semana, pancadão é a diversão deles --e nenhum morador pode reclamar”, afirma Passos.
Com as invasões, diz, aumenta o fluxo de migrantes de outros Estados, que, segundo ele, quando combinado com as atuais taxas de desemprego, resulta na explosão de crimes.
Você encontra um grande número de pessoas que vieram de fora de São Paulo, nordestinos --pessoas trabalhadoras na grande maioria, mas pessoas com pavio curto. Eles bebem, estão ali no forró deles, se um olhou feio para o outro, já quebra a garrafa, dá um tiro, porque infelizmente não tiveram a educação, uma cultura
Gilvan Passos, secretário de Segurança Pública de Guarulhos
“Você encontra um grande número de pessoas que vieram de fora de São Paulo, nordestinos --pessoas trabalhadoras na grande maioria, mas pessoas com pavio curto. Numa sexta-feira à noite, eles bebem, estão ali no barzinho, no forró deles, se um olhou feio para o outro, já quebra a garrafa, dá um tiro, porque infelizmente não tiveram a educação, uma cultura, e infelizmente acontece isso.”
Para Passos, o desemprego incentiva a permanência nos bares até a madrugada e a entrada dos mais jovens no tráfico de drogas. “A pessoa que trabalhava chegava em casa, tomava seu banho e ia dormir. Hoje essa pessoa fica no bar até altas horas, onde o ambiente não é bom. Quem está desempregado vai para o tráfico porque ele não tem uma renda. E a falta de opções no local também leva a isso.”
Em nota, a Secretaria de Segurança Pública do Estado afirmou que a Polícia Civil de Guarulhos prendeu 11 pessoas por suspeita de participação em crimes de homicídio, no primeiro semestre de 2017, sem no entanto especificar a região em que os possíveis crimes foram cometidos. Os outros casos permanecem sendo investigados para esclarecer a autoria e motivação, prossegue o comunicado.
Sobre a região do Jardim Taboão, a SSP afirma que a Polícia Militar conta com uma Base Comunitária Móvel "para aproximar o contato dos agentes com os moradores".
"Ainda dentro do conceito de Polícia Comunitária, foi implantado na região o projeto Vizinhança Solidária, que estimula a comunicação entre os moradores do bairro para ações de segurança, facilitando e agilizando os pedidos de auxílio à polícia", afirma a secretaria. Segundo a SSP, 54 pessoas foram presas ou apreendidas em flagrante na região no período de janeiro a maio na região do 9° DP.
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