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Sem opções de lazer, jovens na periferia de SP aproveitam "baile funk" em escolas na madrugada

Jovens de Brasilândia, na zona norte da capital, aproveitam a balada promovida pelo governo na escola - Ricardo Matsukawa/UOL - 29.set.2017
Jovens de Brasilândia, na zona norte da capital, aproveitam a balada promovida pelo governo na escola Imagem: Ricardo Matsukawa/UOL - 29.set.2017

Aiuri Rebello

Do UOL, em São Paulo

08/10/2017 04h00

O DJ solta o funk que bomba nas caixas de som embaixo das luzes estroboscópicas e coloridas. A galera na pista pira. Sabe todas as rimas e capricha nas coreografias. A maioria é adolescente, na faixa dos 15 aos 18 anos de idade. Em volta, uma molecada improvisa manobras de skate, outros conversam em roda, enquanto na parede ao lado alguns tantos fazem grafites. Já é 1h30 de uma madrugada de sábado fria e chuvosa em setembro, e ainda não parou de chegar gente.

A cena poderia ser de qualquer balada de jovens da capital -- ou algum comercial de TV que pretendesse simular o que é uma --, mas aconteceu dentro da Escola Estadual Maria Zilda Gamba dos Reis, no Jardim Carombé, uma encosta larga e alta na Brasilândia, extremo da zona norte da capital. A escola fica lá em cima, no topo de uma ladeira que, na chuva e dependendo do carro e de quantos ocupantes ele carregar, não é possível subir com o veículo. Do lado de fora, uma ambulância e um carro da PM estão de prontidão para qualquer emergência.

A "Balada Campeã", como foi batizada, é uma iniciativa do governo do Estado de São Paulo para tentar tirar jovens dos pancadões de rua durante a noite e madrugada aos finais de semana em comunidades carentes da periferia de São Paulo. Além de música, dança e grafite, oferece também para os jovens um campeonato masculino e feminino de futsal. Nesta primeira edição, acontece em mais três escolas em comunidades carentes fora Brasilândia: Rio Pequeno, Paraisópolis e Heliópolis.

Juntas, as quatro regiões da cidade abrigam pelo menos 500 mil habitantes dos poucos mais de 12 milhões que vivem na capital, de acordo com projeção do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) para 2017. Em comum, a longa distância do centro, altos índices de violência e opções de lazer para jovens, crianças ou adultos, praticamente inexistentes (fora a rua e alguns poucos aparelhos públicos como praças e parques).

Lançada com estardalhaço -- além do governador Geraldo Alckmin participaram do evento inaugural em área nobre de São Paulo, realizado no Museu do Futebol, personalidades do esporte como os Cafú e Marcelinho Paulista (futebol), Minotauro (MMA), Paula (basquete), Marcelo Negrão e Maurício (vôlei), além de Falcão (futsal)-- a Balada Campeã é realizada em oito finais de semana consecutivos até o dia 11 de novembro, sempre a partir das 22h.

Em Brasilândia, a infraestrutura montada é simples -- monitores e profissionais do atendimento psicossocial, tendas, um palco com equipamentos para o DJ, luzes, caixas de som e microfones, latas de tinta e acessórios para os grafites, bolas, redes e uniformes para o futebol. Basicamente é isso, já que os food trucks que deveriam estar lá não foram -- mas parece o suficiente para deixar a galera feliz. Nesta noite, algo entre 200 e 300 jovens participaram do evento na Brasilândia.

Afinal, eles não precisam de muito para se divertir: um local adequado, música, alguma coisa para fazer e os amigos junto. O resto é com eles. É o que pensa o estudante Alan Henrique, de 17 anos. "Estou achando legal, muito legal", disse. "Aqui é difícil ter um lugar legal para reunir os amigos, ouvir uma música, conversar", explica. 

Na paralela, PM reprime o pancadão nas ruas

5.out.2016 - Movimentação na E.E. Renato de Arruda Penteado, durante projeto "Balada Campeã", promovido pelo Governo do Estado de SP na Brasilândia e outras 3 comunidades carentes da capital - Ricardo Matsukawa/UOL - Ricardo Matsukawa/UOL
Na Brasilândia, na zona norte da capital, os jovens aprovaram a balada dentro da escola
Imagem: Ricardo Matsukawa/UOL

Aparentemente, a adesão dos meninos foi maior, mas havia muitos casais, garotas e até pais espalhados pela escola. "Está da hora a balada aqui, a nossa galera inteira veio para dançar. Eu nunca gostei muito dos bailes funk na rua por causa da bagunça de droga e bebida, mas adoro dançar", diz a estudante Luana Rocha, de 17 anos. "A escola já é nosso espaço, podia ter este tipo de baile funk sempre."

A iniciativa é complementar ao esforço do governo do Estado de acabar com os pancadões de rua na capital. No jardim Corumbé, os adolescentes dizem que o pancadão mais famoso é conhecido como "Iraque", realizado às sextas e sábados na esquina de uma rua mais larga no pé do morro, ali próximo à escola da Balada Campeã.

"Ainda acontece, mas tem uns três meses que a PM está caindo matando em cima do Iraque", diz Anderson Cardozo de Souza, 17, também estudante da escola, que diz não frenquentar o pancadão na rua. A Balada Campeã é aberta para toda a comunidade, mas quem aderiu, na maioria, são alunos da escola onde acontece o evento. 

 "Quando começa a juntar muita gente e virar bagunça, dá muito 'B.O.' (encrenca), o bagulho é doido", diz um adolescente que preferiu não dizer quem era por que gosta de ir no "Iraque". "A galera alastra, som muito alto, droga e bebida até de manhã cedo... a PM começou a proibir, quando começa a formar legal eles aparecem soltando bomba e spray de pimenta na cara de todo mundo. Se você for lá para baixo agora vai difícil encontrar um baile funk da hora, mas PM vai ter uma pá. Os cara anda pegando pesado com o pancadão de rua."

Na parte baixa da favela, a maioria das casas são de alvenaria e poucos botecos abertos fazem as vezes de comércio noturno local, mas mesmo eles atraem poucos fregueses. Talvez por causa da chuva e do frio. O movimento de carros é fraco, mas o de carros da Polícia Militar, não. Cruzam as principais vias da quebrada com os faróis apagados a todo momento. É difícil não encontrar com uma, enquadrando alguém ou não, a cada punhado de quarteirões.

De janeiro a junho deste ano, a PM aplicou na capital 3.650 multas por "usar no veículo equipamento com som em volume/frequência não autorizados pelo Contran [Conselho Nacional de Trânsito]", no qual se enquadram os pancadões em via pública. Foram 1.225 multas em todo o ano de 2016, um número quase três vezes menor que o verificado na primeira metade de 2017.

Contrato gera disputa e vira denúncia no MP

5.out.2016 - Movimentação na E.E. Renato de Arruda Penteado, durante projeto "Balada Campeã", promovido pelo Governo do Estado de SP na Brasilândia e outras 3 comunidades carentes da capital - Ricardo Matsukawa/UOL - Ricardo Matsukawa/UOL
O futebol é uma das atividades oferecidas na Balada Campeã
Imagem: Ricardo Matsukawa/UOL

O governo do Estado de São Paulo está investindo R$ 2,3 milhões ao todo na organização da Balada Campeã. Custos adicionais como tintas e bolas são cobertos por empresas parceiras do projeto. 

Para escolher a empresa responsável por organizar o evento, o governo lançou uma licitação vencida pela TFW Marketing e Participações. Foi a quinta colocada no pregão eletrônico. A melhor proposta para o serviço era de R$ 1,57 milhão, ou cerca de R$ 700 mil mais barato.

Dela até chegar na TFW, foram desclassificadas quatro empresas com o mesmo motivo: "Considerando o valor médio orçado pela administração e, com fundamento nos parâmetros propostos na Lei de Licitações, bem como em detrimento ao interesse publico e da boa execução do objeto licitado, considero o preço não aceitável", de acordo com o pregoeiro da licitação.

A falta de mais explicações para a desclassificação e de oportunidade para as empresas desclassificadas mostrarem que seus preços eram possíveis fez com que elas denunciassem o caso no MP-SP (Ministério Público de São Paulo), no TC-SP (Tribunal de Contas de São Paulo) e na Corregedoria Geral do Estado, entre outros órgãos de controle. Ainda não há resposta para as denúncias.

Questionada sobre a polêmica da licitação, a Secretaria do Esporte, Lazer e Juventude de São Paulo, por meio de sua assessoria de imprensa, aifrmou que, como as outras quatro foram desclassificadas, a TFW na verdade foi a primeira, e não a quinta. O UOL perguntou por que os outros orçamentos não foram considerados e por que não foi feita uma análise (diligências) nos mesmos para checar esta possibilidade, o que poderia render uma economia de até R$ 700 mil, mas não houve resposta.

Sobre as denúncias aos órgãos de controle contra o processo licitatório, o governo diz que não sabe de nada e que não recebeu nenhuma notificação formal.

Sobre os food trucks previstos no edital e que não estavam disponíveis para os frequentadores da Balada Campeã na Brasilândia, a pasta do Esporte diz que a alternativa foi a abertura das cantinas das escolas para o evento, e que o lucro destas vendas é dos comerciantes. Apesar disso, no edital do projeto bancado pelo governo de SP, está clara a obrigação do organizador providenciar as atrações. Na apresentação do projeto disponível na internet, a secretaria vende esta parte como um "festival de food trucks".

De acordo com o balanço do governo, até o momento o Balada Campeã recebeu cerca de 2.000 pessoas por fim de semana ao todo, nas quatro comunidades. A secretaria do Esporte confirma o apoio da PM na ação, além do da Secretaria de Educação.

Na enfermaria, conversas sobre exo, drogas e bullying

De volta à Balada Campeã, a madrugada já é alta, o movimento de jovens ainda é grande e a enfermeira, a psicóloga e terapeutas do atendimento psicosocial estão indo embora. "Foi surpreendente, não achávamos que alguém estaria disposto a conversar com a gente, mas formamos um grupo muito bom com uns 15 adolescentes", afirma a enfermeira Adna Thaysa Silva.

De acordo com ela, a primeira coisa que chamou a atenção foi a questão dos narcóticos. "A droga, principalmente o álcool e a maconha, fazem parte da vida destes adolescentes e são tratados como coisas absolutamente normais pelos menores de idade. Faz parte da vida deles, mesmo dentre os que não usam, que são maioria sempre", diz. "A segunda coisa que mais foi abordada foi o problema do bullying entre eles, já relacionado com o preconceito do qual eles sentem-se vítimas por viverem em uma comunidade carente afastada do centro", afirma a enfermeira.

Questões sexuais como doenças e gravidez, estudo e trabalho, assim como violência no geral e policial especificamente, também costumam aparecer nas rodas de conversa. "A gente sente que eles também querem acreditar, sonhar com um futuro melhor, uma profissão... e perguntam isso para a gente: o que fazer?", diz a naturóloga Ana Caroline Piques.