Voluntários resolveram pôr a mão na massa para ajudar e hoje seu trabalho é reunir mais gente
Sábado de primavera e um escaldante sol de quase 30°C no início da tarde.
Enquanto muitos estão em piscinas, em praias, tomando sua cervejinha gelada com amigos ou debaixo do ar-condicionado dos shoppings, um consultor ambiental, um produtor de vídeos e um administrador de empresas literalmente botam a mão na massa. Ajudam em ações diversas de melhoria nas dependências de uma ocupação de grupo de sem-teto num prédio do INSS (Instituto Nacional de Seguro Social), no centro de São Paulo.
A entrada no edifício onde eles estão só se dá com autorização prévia. Após as devidas identificações passadas para um senhor que faz as vezes de porteiro e segurança, atravessamos o portão de aço.
Vê-se então à esquerda, no alto, um terreno baldio onde um homem de meia-idade, forte e bem-disposto apesar do calor, desfere a enxada na terra como se ensinasse às demais pessoas a sua volta como revirá-la.
Os que o observam são, em sua maioria, jovens bem-vestidos que o olham com curiosidade. Quem segura a enxada é o engenheiro químico Mauricir Lairton Moreira, 46, dono de uma consultoria ambiental. Há tempos estabilizado financeiramente, ele prefere participar de ações de voluntariado a desfrutar do dinheiro que acumulou na vida e que ganha exercendo sua profissão.
Moreira é o "instrutor das hortas" nas ações de que participa, devido ao seu conhecimento técnico e apreço por cuidar da terra, de onde, em breve, brotarão hortaliças e leguminosas para alimentar os integrantes da ocupação.
Ele conta que despertou para ações sociais justamente distribuindo alimentos. Foi nessa época que viveu uma das experiências mais marcantes de sua vida.
"Tio, você me dá seu casaco?"
Moreira conta que estava distribuindo refeições na praça da Sé, no centro da capital paulista, à noite, em um dia de frio, quando um garoto o abordou pedindo o seu casaco. O consultor ambiental pediu desculpas e negou.
"O rapaz me olhou e disse uma coisa da qual não me esqueço até hoje. Ele falou assim: 'O senhor vai embora daqui e terá casa para ir e outra roupa para vestir. Eu vou ficar. Se o senhor não me der, não terei nada', e daí eu desmontei. Não tive como, entreguei a blusa", afirma. Para Moreira, doar parte do seu tempo ao próximo é uma forma de dar um pouco de aconchego a garotos como aquele que ele viu na Sé.
Durante a entrevista, ele é chamado pela gerente de projetos Andréa de Castilho Albero, 29. Ela e outras garotas colocam terra em vasos que serão afixados em páletes --espécie de estrados de madeira--, a serem parafusados na parede de alvenaria externa que dá acesso à entrada do prédio.
Andréa quer saber como dispor as mudas de temperos, com a finalidade de separar aquelas que devem receber mais água das que requerem menor irrigação para se desenvolver. Após as instruções do "professor da horta", ela pega o pálete cheio e, com a ajuda de uma amiga, o levanta.
O repórter se dispõe a ajudar, ao que Andréa dispara: "Estou acostumada, obrigado". Ela diz que, nas ações sociais, já desempenhou várias funções e o "mantra" para que consiga fazer todas elas é o mesmo: "Meter a mão na massa para o que der e vier".
Caminhando para a entrada do prédio, à direita, encontra-se um rapaz alto e magro que coordena os demais a pintarem o chão de concreto. O objetivo do grupo é adequar o espaço para que sirva de quadra de futebol para as crianças.
O orientador dos pintores é o produtor de vídeos Leandro Costa, 30, também conhecido como "Lata". O apelido vem de sua atuação como grafiteiro. Costa integra o Revitarte, projeto que reúne artistas com o objetivo de revitalizar espaços urbanos, em sua maior parte, em locais da periferia.
"Lata" diz que começou a tomar gosto por trabalhos voluntários por volta de 2012, quando, com a ajuda de amigos, fez a "revitalização" da residência de uma vizinha, então dependente química. "A casa dela era toda depenada. Como sabiam que eu grafitava, vizinhos vieram me pedir ajuda e então eu falei que era só me darem as tintas que eu dava um jeito de pintar. Com a ajuda de todos, a mulher acabou até melhorando o astral dela", afirma.
De lá, o "produtor-grafiteiro" tomou gosto por ajudar e acabou por se candidatar a ações de voluntários. Um dos projetos foi a pintura do escadão do Jardim Monte Azul, na região da Vila das Belezas (extremo da zona sul). "Todo mundo conhece as galerias a céu aberto da cidade. Mas nos bairros da periferia não", afirma.
Juntando gente boa
Entrando no prédio da ocupação e subindo as escadas, no quinto andar, jovens de classe média pintavam as paredes de um espaço que abrigaria a futura brinquedoteca. Um deles chama a atenção pela pouca desenvoltura de seu vaivém na parede espalhando tinta amarela com um pincel anexado a um cabo de vassoura. É André Cervi, 28, graduado há cinco anos em administração de empresas pela FEA-USP (Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo) e hoje diretor da Atados, uma plataforma online que atua como ONG e tem o lema "Juntando Gente Boa".
Apesar da timidez ao falar, ele reconta a história da fundação do grupo, que foi finalista do prêmio Empreendedor Social do jornal "Folha de S.Paulo" de 2014. Sem a atuação da ONG, os caminhos do consultor ambiental Moreira, do produtor Costa e da gerente de projetos Andréa, além de outro tanto "de gente boa" exercitando o voluntariado naquela tarde, não teriam se cruzado.
A Atados promove apenas o "meio de campo" entre as empresas que atuam em ações sociais, voluntários e entidades que recebem os trabalhos de forma gratuita. Ela foi criada a partir da ideia de amigos estudantes de administração da USP e que já estavam iniciando suas carreiras no meio empresarial.
Cervi, por exemplo, diz que passava seus dias elaborando PPTs (apresentações em Power Point) em uma consultoria de gestão empresarial. "Eu nutria certa insatisfação em trabalhar em uma empresa que só visava o lucro", afirma. À época ele atuava como estagiário na consultoria, porém, já ganhava um salário razoável. "Todos sempre quiseram empreender e no início ninguém tinha experiência no setor social", afirma.
Filho de classe média alta de uma família do interior do Paraná, Cervi diz que os pais compreenderam a escolha por desenvolver trabalho social e deram suporte à iniciativa.
Durante dois anos, os fundadores da Atados ficaram sem receber nada. Depois de elaborarem um modelo de gestão, usando parte do que aprenderam nos bancos da USP, eles finalmente conseguiram oferecer às empresas consultoria e assessoria em responsabilidade social enquanto entravam em contato com ONGs que precisavam de ajuda e abriam espaço para cadastro de pessoas que queriam fazer trabalhos voluntários e não sabiam como. Para isso, desenvolveram a plataforma.
Passados cinco anos, Cervi e nenhum dos outros integrantes originais --além dele, apenas Daniel Morais continua no grupo; os demais encontraram outras formas de ajudar o próximo-- acumularam bens, como carro e casa. E ele diz que esse nem é o seu objetivo.
"Antigamente o sonho de qualquer um era ter um carro, apartamento, casa etc. Hoje uma galera anda de 'bike', metrô e descobriu que para ser feliz não precisa necessariamente ter casa ou apartamento", afirma Cervi.
Ele diz que culturalmente, no Brasil, não existe um engajamento social forte e estruturado. Questionado sobre como as pessoas podem ajudar e se engajar em causas sociais, ele diz que o mais importante é colocar a mão na massa o quanto antes.
"As pessoas adoram postergar. Muitos encaram o auxílio ao próximo apenas como doação, porém, prezamos muito pelo presencial. Muitos que vieram aqui [trabalhar como voluntários] se apaixonaram e ficaram", afirma.
O trabalho na ocupação da avenida 9 de Julho é apenas um dos vários projetos que a Atados ajudou a realizar. A ação daquele dia era apenas uma das várias para comemorar os cinco anos do grupo.
Nesse período, eles conseguiram formar uma base de mais de 70 mil voluntários cadastrados, e mais de 1.200 organizações em quatro cidades --São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília e Curitiba. Hoje o grupo, que ficou dois anos só investindo tempo e dinheiro, já consegue faturar o suficiente para pagar o salário de todos os integrantes da ONG. O que sobra é reinvestido no próprio negócio, com a finalidade de poder atender mais cidades pelo país.
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