NE: prometida por Bolsonaro, dessalinização já dava água a milhares em 2018
São 6h, e os moradores do povoado Moreira, na zona rural de Palmeira dos Índios (a 130 km de Maceió), no sertão alagoano, já fazem fila para receber água de um poço artesiano que abastece as cem famílias da comunidade há seis meses. Mesmo com a água subterrânea salobra, um sistema dessalinizador instalado no local a purifica e garante água potável a toda comunidade.
Anunciados como uma das ações do presidente eleito Jair Bolsonaro (PSL) em parceria com Israel para o Nordeste, os dessalinizadores não são novidade no sertão e existem em centenas de comunidades do semiárido.
Professor de engenharia química da UFCG (Universidade Federal de Campina Grande), Kepler Borges França é coordenador do Laboratório de Referência em Dessalinização —que pesquisa o tema há mais de 25 anos. Segundo ele, ao longo de 30 anos foram instalados de 3.500 a 4.000 dessalinizadores. "Mas nem todos estão mais funcionando, não sabemos um número exato", diz.
França explica que existem pesquisas brasileiras ao longo de anos que fazem o país dominar várias técnicas modernas de dessalinização. "Temos a dessalinização por processos térmicos, por energia solar, através de destilação, por compressão de vapor, de membrana —que é a mais utilizada mundialmente—, que vêm sendo utilizadas em comunidades. E também temos novos caminhos, como a membrana cerâmica, que nós da UFCG desenvolvemos", diz. "Precisamos melhorar, óbvio. Mas o que precisamos é de mais investimento do governo federal e de órgãos de fomento para incentivar cientistas a desenvolver tecnologias e deixar de comprar membranas dos gringos, porque isso deixa mais caro o sistema", afirma.
O professor elogia a atitude de Jair Bolsonaro pela ideia de parceria com Israel e afirma ver o futuro governo interessado em ampliar o acesso a água de qualidade para os sertanejos. Mas faz também uma sugestão. "Eu não vejo nada de errado do novo governo [em buscar acordo com Israel], inclusive acho extremamente salutar. Mas há uma necessidade de fazer um diagnóstico do que nós temos aqui, arrumar a casa. Tem estado com mais de mil dessalinizadores já instalados, imagina a manutenção deles como está. Mas o futuro ministro [Ricardo Salles] tem conhecimento de tudo isso, com certeza, e vai atuar nesse campo", afirma.
Meta descumprida, mas processos em andamento
Em 2004, foi criado o programa Água Doce, com atuação do governo federal em parceria com os estados. A meta era implantar 1.200 equipamentos até o final deste ano. Segundo o Ministério do Meio Ambiente, que coordena o projeto, 924 desses dessalinizadores já foram contratados. Desses, há 575 em funcionamento, 147 em obras e 202 estão prestes a iniciar o processo de implantação.
Segundo informou a pasta ao UOL, a meta não foi totalmente cumprida porque "os convênios com os estados de Pernambuco, Minas Gerais e Maranhão encontram-se na fase de diagnóstico, para em seguida iniciar a execução".
Além do atual programa do governo federal, há outros mantidos por ONGs e governos estaduais que, ao longo das últimas três de décadas, instalaram diversos equipamentos pela região. Muitos deles foram feitos ainda no século 20 pelo DNOCS (Departamento Nacional de Obras Contra as Secas).
"Milagre" da água
No povoado Moreira, a seca não assusta mais como antes. Mesmo com barreiros, açudes, cacimbas e até olhos d'água secos. O sistema dessalinizador do local é capaz de produzir 600 litros de água por hora. Por semana, cada família tem direito a 120 litros —ao custo de uma taxa mensal de R$ 5. O sistema ainda abastece a escola e o posto de saúde da comunidade.
O funcionamento é garantido por dois moradores da comunidade que trabalham como voluntários na operação do dessalinizador e na distribuição da água potável. A distribuição ocorre às segundas, quartas e sextas-feiras, das 7h às 9h. Em cada um desses dias, cada família leva 40 litros de água em dois vasilhames de 20 litros, higienizados e lacrados.
A moradora Maria do Amparo da Silva Ferreira, 32, conta que nasceu e sempre viveu na comunidade e vê no dessalinizador um "milagre". "É um sonho realizado. Minha família não tem condições de comprar água mineral e tínhamos de beber a água armazenada na cisterna mesmo. A cor amarelada parecia suco de laranja, e o gosto era forte. Hoje tudo mudou, e paramos de adoecer", conta ela, que é uma das duas pessoas responsáveis pela operação do dessalinizador.
Tarcísio Barbosa Fernandes, 25, também trabalha todos os dias como operador do dessalinizador. Ele conta que já recusou trabalho para continuar ajudando a comunidade. "É gratificante ver essa máquina funcionar e matar a sede da gente com água de qualidade. A máquina retira a salinidade da água e transforma em água doce. Nem parece que é salobra. Estamos satisfeitos com o dessalinizador e feliz em ajudar as pessoas que não podiam comprar água para beber", conta.
Como funciona?
Segundo a Secretaria de Meio Ambiente e Recursos Hídricos de Alagoas, cada sistema dessalinizador (a depender do tamanho da comunidade a ser abastecida), custa entre R$ 16 mil e R$ 28 mil. O valor é considerado baixo para o benefício humano.
Na comunidade Moreira, a água é retirada do poço por meio de uma bomba e é armazenada em uma caixa d'água que é interligada ao dessalinizador. Durante o processo, o aparelho retira a salinidade da água, que a transforma em doce e concentra os resíduos retirados em outro recipiente. A distribuição é feita em dois lugares próprios para água doce, que é usada para beber e cozinhar. Já a água bruta serve para animais e serviços domésticos.
"Antes de a água ser distribuída, ela passa por processo de clorificação para matar as bactérias e os vasilhames que trazem tem de estar higienizados corretamente", conta Fernandes. "A gente higieniza também as torneiras onde os vasilhames são enchidos e passo a fita lacrando os botijões para que não haja contaminação no transporte", completa Amparo.
Morador da comunidade, o ajudante de produção Elisson Thiago da Costa Duarte, 33, afirma que não tem mais despesa com a compra de água mineral. "Não só a qualidade da água mudou para melhor, como a qualidade de vida. O que gastava com água mineral já posso usar para comprar outros alimentos. A água é boa, esse dessalinizador é um presente de Deus", afirmou Duarte.
Moradores têm deveres no programa
Segundo Ana Cristina Azevedo, coordenadora do programa Água Doce em Alagoas, os dessalinizadores são uma das mais importantes políticas para a convivência do sertanejo com a seca. "No semiárido é quase impossível encontrar um poço de água limpa. A solução são as águas subterrâneas, mas que são impróprias para uso humano. Para oferecer a população, a água precisa passar pelo processo, no qual passa a ter excelente qualidade", diz.
Ela explica que o programa consiste em três pilares, mas que só funcionam com a participação da comunidade. "Os pilares são a mobilização social, sustentabilidade ambiental e monitoramento. Nesse processo se inclui a comunidade diretamente, porque eles vão ser os beneficiários. No acordo de gestão, um dos pontos é que os moradores têm deveres, precisam cuidar, operar e ter responsabilidade. Nós damos o suporte técnico", relata Azevedo.
Segundo a coordenadora, ainda há uma grande demanda de equipamentos no semiárido, que variam de estado para estado. Em Alagoas, por exemplo, são 50 dessalinizadores em funcionamento, "mas a demanda para os próximos dez anos é de 240 sistemas".
Dessalinizadores atuais do programa Água Doce:
- 234 no Ceará
- 145 na Bahia
- 68 no Rio Grande do Norte
- 45 em Alagoas
- 44 na Paraíba
- 29 em Sergipe
- 10 no Piauí
- Pernambuco, Minas Gerais e Maranhão ainda estão em fase de diagnóstico e não deram início à execução
Fonte: MMA (Ministério do Meio Ambiente)
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