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Ideia de Bolsonaro de barrar radares em rodovias é loucura, diz pesquisador

37 mil pessoas morreram em acidentes de trânsito no país em 2016, marca distante da meta de 19 mil assumida com a ONU - Marcos Antonio Costa/Futura Press/Folhapress
37 mil pessoas morreram em acidentes de trânsito no país em 2016, marca distante da meta de 19 mil assumida com a ONU Imagem: Marcos Antonio Costa/Futura Press/Folhapress

Wellington Ramalhoso

Do UOL, em São Paulo

14/04/2019 04h00

Engenheiro e sociólogo, Eduardo Vasconcellos é um raro pesquisador que transita com desenvoltura entre as ciências exatas e as humanas. Trata-se de um dos principais estudiosos de trânsito e mobilidade do país, com dez livros publicados sobre o tema. Para ele, o governo Jair Bolsonaro (PSL) cometerá um grave retrocesso se levar adiante propostas como a de barrar a instalação de radares em rodovias e a de elevar o limite de pontos para um motorista ter a CNH (Carteira Nacional de Habilitação) suspensa.

"Reduzir a fiscalização sobre a velocidade é um suicídio, uma loucura. Isso mostra uma visão demagógica, populista", afirma Vasconcellos. "No fundo de toda essa discussão, tem um desejo de se poder cometer mais infrações".

O autor de "Mobilidade urbana e cidadania" e "Risco no trânsito, omissão e calamidade - impactos do incentivo à motocicleta no Brasil" é diretor do Instituto Movimento e trabalha como consultor internacional na área. Em entrevista ao UOL, ele também comenta os custos dos acidentes de trânsito e caminhos para o país reduzir a quantidade de casos.

Confira abaixo os principais trechos da entrevista.

UOL - O governo Bolsonaro deve propor o aumento de 20 para 40 o limite de pontos para um motorista ter a CNH suspensa. Qual sua avaliação sobre esta proposta?

Eduardo Vasconcellos - Nosso sistema surgiu em 1997 com o novo Código de Trânsito, é muito balanceado e, na minha opinião, não deve mudar. A principal maneira de avaliar é ver o que outros países que cuidaram bem desse tema fizeram, países que conseguiram reduzir muito o número de acidente e mortes. Esses países têm regras muito mais rígidas que as nossas, com limites de dez, 15 pontos.

Tem uma discussão paralela que é válida e poderia ser considerada. As infrações têm riscos diferentes. Tem infrações muito singelas, como estacionar rapidamente em local proibido numa rua que não atrapalha ninguém. O risco de isso causar um grande problema pode ser pequeno, e talvez os pontos associados a esse tipo de infração pudessem ser mais baixos.

[Pode-se] mexer na dosimetria só para situações que não vão machucar ninguém. Não se deve mexer nas outras infrações que representam risco de morte.

O que o sr. pensa sobre a proposta do governo de elevar de cinco para dez anos o prazo para a renovação da CNH?

É uma área mais médica. Com prazos muito longos pode acontecer de a pessoa ter algum problema de saúde que dificulte muito a direção segura.

Por exemplo, a questão da mobilidade das pernas e das mãos, os olhos, a visão. Prazos muito longos podem permitir que pessoas que estão com problemas de visão ou dificuldades motoras dirijam. Passei dos 60 anos e agora tenho que renovar a cada três anos, e não a cada cinco anos. Acho isto correto.

E no caso de motoristas profissionais? O sr. é a favor de um prazo maior para a renovação?

Não. Acho que todo mundo é igual. Uma vez estabelecido o critério razoável, todo mundo tem que obedecer.

O presidente Jair Bolsonaro disse no fim de março que barraria a instalação de 8.000 radares nas rodovias federais. A Justiça determinou que o governo não faça isto antes de apresentar uma política pública, com estudos técnicos, melhor que a atual. A posição do governo é equivocada?

Esse é o pior erro que a gente pode cometer. Na história da segurança de trânsito, todos os países que conseguiram reduzir as mortes foram muito rigorosos com a velocidade. O primeiro objetivo na engenharia de trânsito, que hoje se chama mobilidade, é garantir a vida das pessoas, que elas não se machuquem e não morram.

Que negócio é esse de 'indústria de multa' que se fala no Brasil? Se os radares falsificassem as infrações, isso sim seria motivo de trocar o radar. Mas não falsificam. Eles fotografam a realidade, produzem informação correta. No fundo de toda essa discussão, tem um desejo de se poder cometer mais infrações.

A posição do governo, no meu entender, é totalmente errada. Como as pessoas se machucam ou vêm a morrer num acidente de trânsito? Isto está conectado com a energia do choque. A energia é produto da velocidade. A energia ligada à velocidade que está nos veículos envolvidos vai se dissipar no choque em calor, barulho e em destruição dos corpos. Quanto maior a energia mais pessoas morrerão ou se machucarão.

Se você aumentar a velocidade de um carro de 50 km/h para 70 km/h, isso é aumento de 40% na velocidade, mas a energia cinética aumenta ao quadrado. A energia que está ligada ao seu carro a 70 km/h será o dobro da energia que estava conectada quando você estava a 50 km/h.

Reduzir a fiscalização sobre a velocidade é um suicídio, uma loucura. Isso mostra uma visão demagógica, populista. É um absurdo. Tem que limitar a velocidade mesmo e fiscalizar bastante. E o radar é um instrumento muito importante para que isso aconteça.

Se houver uma redução generalizada do controle da velocidade, vai ser uma tragédia. Já temos [quase] 40 mil mortos por ano. Daqui a pouco vamos ter 50 mil. Espero que consigamos convencer o governo a parar com esse tipo de retrocesso gravíssimo.

Que países são bons exemplos por reduzir as mortes no trânsito?

Os que conseguiram melhores resultados são principalmente os nórdicos -- Suécia, Dinamarca e Noruega. Eles têm um trabalho longo, com muito rigor. Outros países europeus como França, Alemanha e Inglaterra também muito bons. A Espanha também conseguiu grandes resultados na última décadas, além do Japão e do Canadá. Esse é o grupo que investiu mais. São sociedades que conseguiram reduzir bastante o problema.

O Brasil melhorou bastante depois do novo Código de Trânsito, embora o número de mortes ainda seja muito alto.

O Brasil assumiu com a ONU (Organização das Nações Unidas) a meta de reduzir para 19 mil ao ano o número de mortes no trânsito em 2020. O último dado disponível mostra que 37 mil pessoas morreram no trânsito em 2016. Ou seja, o país está distante da meta. O que é necessário fazer para o país diminuir o número de mortes?

Já chegamos em 2019 e não fizemos nada praticamente nesse período por causa desse tipo de visão populista, demagógica e também ignorante. Muita gente dá palpite sem ter a noção técnica do que estamos falando. Fica uma coisa emocional.

Se outras sociedades conseguiram números muito menores por habitante, também podemos conseguir.

Uma coisa que melhorou muito no Brasil é o número de mortes nas grandes cidades. Isso aconteceu por causa do novo Código de Trânsito e da municipalização do trânsito. Em São Paulo, no passado, tínhamos 3.000 mortos por ano. Hoje está com 900 mesmo com uma frota maior. Em Belo Horizonte, Rio de Janeiro e Curitiba, caíram muito os números de mortes. Porque houve a engenharia de trânsito e houve o controle da velocidade.

Com a municipalização, os prefeitos são os responsáveis pela mobilidade das cidades. Eles têm recursos que vêm das multas. Isso aumentou muito a fiscalização, a qualidade das vias, a sinalização, a educação nas escolas. Tem que continuar com esse esforço, esclarecer as pessoas de que algumas infrações são muito graves, e conseguir que estes bons resultados também aconteçam em outras cidades e nas rodovias.

Em vez de tirar radar, tem que colocar. E colocar sinalização mais adequada, controlar muito o uso de álcool e drogas e tomar cuidado com os mais vulneráveis, os pedestres e ciclistas, que são os que mais sofrem no caso de choque.

Estudo mostra o custo dos acidentes nas 533 maiores cidades do país  - Nilton Cardin/Estadão Conteúdo - Nilton Cardin/Estadão Conteúdo
Pesquisador diz que custo dos acidentes nas 533 maiores cidades do país foi de R$ 130 bilhões em 2016
Imagem: Nilton Cardin/Estadão Conteúdo

O poder público enfrenta a necessidade de cortar gastos diante da situação econômica do país. Com este cenário, como investir mais na fiscalização do trânsito?

Nesta área, existe muito recurso usado em coisas desnecessárias. Seria o caso de tirar o dinheiro de lugares desnecessários, em coisas que não são essenciais, e colocar onde é preciso. Por exemplo, investimos muito mais que o necessário no sistema viário.

Temos 400 mil km de vias nas 533 maiores cidades do país. Nossa engenharia copiou os parâmetros norte-americanos. Então, nossas ruas, em geral, têm 50% a mais da largura que precisariam ter. Existe um gasto acima do necessário com o sistema viário. Ou seja, damos muito subsídio para o automóvel. Esse excesso de espaço poderia ser transformado em calçada e ciclovia. Além disso, investir em transporte público é essencial.

Lógico que haveria grandes avenidas em grandes cidades, mas todo o sistema viário poderia emagrecer fisicamente e virar outra coisa mais útil e não precisar de tanta manutenção, que custa muitos bilhões por ano.

Teria que ter um debate, mexer em interesses, mas é possível. O automóvel é um veículo muito interessante do ponto de vista individual, mas consome muito espaço e energia.

Qual o custo dos acidentes de trânsito no país?

O relatório de 2016 da ANTP (Associação Nacional de Transportes Públicos) trouxe uma nova metodologia de cálculo e estimativa desse custo. Passamos a usar a metodologia dos países mais ricos.

Nas maiores 533 cidades do país, segundo dados do DataSUS, do Ministério da Saúde, a gente teve 700 mil vítimas de acidentes em 2016. Nessas cidades, foram 24 mil mortes. O custo para a sociedade foi de R$ 130 bilhões em 2016. E isso não é o Brasil inteiro.

Justiça proíbe governo de tirar radares de rodovias

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