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Biográfo conta como Irmã Dulce ergueu um hospital a partir de um galinheiro

Irmã Dulce gostava de forró e tocava gaita - Divulgação/Arquivo OSID
Irmã Dulce gostava de forró e tocava gaita Imagem: Divulgação/Arquivo OSID

Felipe Pereira

Do UOL, em São Paulo

09/10/2019 04h01

Num tempo em que hospital público só tratava quem mostrava Carteira de Trabalho, Irmã Dulce não fechava as portas de sua instituição para ninguém. Ela ia até as favelas de salvador oferecer saúde aos mais pobres. No domingo (13), o Vaticano vai dizer o que a Bahia já sabia: Irmã Dulce é santa.

Irmã Dulce era uma personalidade muito mais complexa do que a figura frágil e voz fina transmitiam, afirma o jornalista Graciliano Rocha, que passou oito anos pesquisando sobre a religiosa. Ele descobriu detalhes como o pragmatismo para se equilibrar entre um médico comunista e governadores e presidentes da ditadura militar. Ele ainda se inteirou do lado espirituoso da religiosa indicada ao Prêmio Nobel da Paz em 1988, mas que gostava de dar apelidos às pessoas próximas.

O material colhido por Rocha virou o livro Irmã Dulce, a Santa dos Pobres. O autor conta detalhes da próxima santa brasileira que construiu um hospital a partir de um galinheiro um hospital que hoje presta 3,5 milhões de atendimentos. Não por acaso, o papa João Paulo II mudou a agenda que o Vaticano tinha preparado e foi visitar Irmã Dulce. Na saída, se ajoelhou para rezar por ela.

UOL - Muitas pessoas veem os religiosos como pessoas retraídas. Mas Irmã Dulce não era assim. Qual era o jeito de ser dela?
Graciliano Rocha -
Irmã Dulce tinha, de fato, um temperamento espirituoso. As pessoas que conviveram com ela relataram, em depoimentos ao livro, que o senso de humor dela brilhava nos momentos de privacidade. Adorava dar apelidos aos outros. A Irmã Emerência, uma colega de congregação já bastante idosa, só chamava de "minha garotinha".

Havia dona Walkíria, que era uma técnica de enfermagem por quem Irmã Dulce tinha verdadeira adoração e que se tornou uma pessoa muito próxima da freira. Irmã Dulce só chamava dona Walkíria, que era um pouco gorda, de "Esqueleto". Irmã Dulce gostava de música, tocava sanfona especialmente quando visitava "os meninos", como ela se referia aos órfãos que ela acolhia no município baiano de Simões Filho. Não tinha uma personalidade melancólica ou retraída. Ela era reservada em público, mas nessas ocasiões privadas sempre demonstrou um temperamento bem solar.

UOL - Ela interagiu com pessoas como o empreiteiro Norberto Odebrecht, o ex-governador Antonio Carlos Magalhães, o ex-presidente José Sarney e outros poderosos. Ela colocava as obras sociais acima de preferências pessoais?

Graciliano Rocha - De fato, a Irmã Dulce tinha um método de ação muito pragmático. Ela conversava com quem tivesse que conversar para obter ajuda do governo ou do empresariado para as suas obras. Um exemplo: Irmã Dulce sempre teve uma boa relação com autoridades baianas ou federais durante a ditadura militar; mesmo assim, seu principal auxiliar no Hospital Santo Antônio entre 1964 e 1972 foi o médico Gerson Mascarenhas, que tinha ligações históricas com o Partido Comunista e chegou a ser preso duas vezes neste período.

Irmã Dulce sempre teve um comportamento de pessoa que desejava ser vista como "apolítica" e foi bem-sucedida nisso. Não achei ao longo destes anos de pesquisa uma única ocasião em que ela tivesse pedido voto para alguém ou subido num palanque. No começo dos anos 1980, quando a redemocratização do país já era um horizonte concreto, perguntaram a ela sobre seu partido de preferência. A resposta dela foi lacônica: "Meu partido é a pobreza. Só não gosto que usem meu nome para política porque isso atrapalha o meu trabalho".

Crianças - Divulgação/Arquivo OSID - Divulgação/Arquivo OSID
Imagem: Divulgação/Arquivo OSID

UOL - Como surgiram as Obras Sociais Irmã Dulce? Foi planejado ou ela foi ajudando o máximo de pessoas que conseguiu e criou esta estrutura de maneira involuntária?
Graciliano Rocha -
O hospital, como toda realização de Irmã Dulce, nasceu de um pouco de improviso. Nos anos 1940, ela vivia um jogo de gato e rato com a prefeitura de Salvador porque ela costumava invadir casas ou prédios públicos para abrigar doentes abandonados. Em 1949, ela decidiu transformar o galinheiro do convento num ambulatório e albergue. Matou as galinhas, espalhou uns estrados e colchões no chão e começou a receber os doentes. Era tudo muito precário, mas definitivamente melhor do que ficar ao relento.

As Obras Sociais Irmã Dulce, a entidade mesmo, surgiu em 1959 para ser a face jurídica do ambulatório que já estava sendo reformado e ampliado. Em 1960, foi inaugurado o hospital neste lugar com 150 leitos. Em 1970, dobrou de tamanho e, em 1983, ultrapassou 800 leitos. Isso é uma característica muito importante dela: Nunca temeu tomar um risco grande se achasse que valia a pena. O que começou improvisado foi profissionalizado aos poucos.

E se você levar em conta que, antes da Constituição de 1988, o atendimento em hospitais públicos estava destinado a quem tinha carteira de trabalho, não a toda a população, a obra dela, que não fechava a porta para ninguém, evitou um colapso social ainda pior do que o enfrentado em Salvador ao longo do século 20.

UOL - Irmã Dulce teve reconhecimento em vida. Mas a partir de quando ela passou a ser respeitada?
Graciliano Rocha -
Acho que ela alcança muito prestígio mesmo a partir dos anos 1950, quando o ambulatório dela começa a crescer de tamanho. Neste período, quando ela percorria a famosa favela de Alagados para atender doentes e socorrer pessoas miseráveis, é quando a imprensa baiana começa a chamá-la de "Anjo Bom da Bahia". A partir dali, o prestígio vai se agigantando para fora da Bahia e do Brasil.

No começo dos anos 1960, o trabalho já era tão reconhecido que ela passou a receber donativos do programa Aliança para o Progresso, do governo Kennedy, e de voluntários de organizações católicas dos Estados Unidos. Esse reconhecimento também acontece nacionalmente a partir da década de 1970 e 1980. Quando morreu em 1992, já era uma personalidade pública de forte expressão nacional, tendo sido indicada pelo presidente José Sarney, em 1988, para o Nobel da Paz. Não ganhou a honraria, mas a fama de santa viva de Salvador era inquestionável.

hospital - Divulgação - Divulgação
Imagem: Divulgação

UOL - Irmã Dulce é vista como uma filha de classe média alta que abre mão de confortos para viver com os pobres. Como ela fez para a fama e os elogios não subirem para cabeça?
Graciliano Rocha -
Acho que ela tinha o pé no chão. Não era uma criatura que se deixava seduzir por rapapés e não cultivava soberba. Irmã Dulce adorava repetir que "o hospital é da Providência Divina, não meu" ou "sou apenas um instrumento de Deus" no atendimento aos mais pobres.

UOL - Gostaria que você comentasse os problemas de saúde que ela enfrentou e como isso a afetou.
Graciliano Rocha -
Ela sempre teve a saúde muito frágil. No final dos anos 1930, operou a garganta e a voz ficou só aquele fiapinho fininho que mais tarde era uma marca registrada dela. Nos anos 1940, salvou-se de uma provável tuberculose, não diagnosticada corretamente. Os dois pulmões foram destruídos, pouco a pouco, por uma bronquiectasia, uma doença que impede a retenção de oxigênio e provoca acúmulo de dióxido de carbono, um gás tóxico, pelo organismo.

Sucessivas pneumonias foram agravando o quadro e reduziram sua capacidade respiratória a cerca de um terço do normal em 1985. A causa disso nunca foi devidamente identificada. Poderia ser um resquício de tuberculose ou mesmo um problema alérgico mal curado na juventude. Pneumonias, como a que ela contraiu depois da missa do papa João Paulo II em 1980, eram fruto do descaso da freira com a própria saúde.

A idade cobrou o tributo também dos seus ossos. No final da vida, ela também era maltratada pela osteoporose e pela artrose nos joelhos. Embora morasse praticamente dentro de um hospital, Irmã Dulce tinha um comportamento que ela própria não recomendava: não concluía os tratamentos com antibióticos, não tinha paciência para as sessões de fisioterapia, alimentava-se mal e tampouco aceitava repousar.

Irmã Dulce - OSID - OSID
Imagem: OSID

UOL - Você citou o papa João Paulo II. Como foi o dia em que ele mudou sua agenda em viagem a Salvador em outubro de 1991 para visitar Irmã Dulce, que estava no final da vida?
Graciliano Rocha -
Irmã Dulce estava mal, passou os últimos 500 dias na cama com vários períodos em coma. Era essa situação difícil pela qual ela passava quando o papa João Paulo II voltou ao Brasil em outubro de 1991. Ele tinha muito claro na memória a visita de 1980, quando chamou Irmã Dulce no altar e ela foi ovacionada pela enorme multidão. Ele estava no carro com o cardeal arcebispo de Salvador, Dom Lucas Moreira Neves, quando resolveram parar no hospital. Irmã Dulce estava internada no convento contíguo ao hospital.

Foi uma visita não programada, não estava no cerimonial preparado pelo Vaticano. Param e sobem ao quarto dela o cardeal e o papa. Ela estava consciente, mas não tinha força para falar. João Paulo II pega as mãos dela, que olha espantada. Tenta falar "papa", mas não consegue. A visita dura minutos, e o papa e o cardeal Dom Lucas descem. Os dois se ajoelham e rezam pela irmã Dulce. Em seguida, o papa fala a Dom Lucas: "Esse é o sofrimento dos inocentes. Igual ao de Jesus".

UOL - Como foi a repercussão da morte de Irmã Dulce no Brasil e no mundo?
Graciliano Rocha -
Foi imensa. Na Bahia, uma multidão de todas as classes sociais, religiões e quaisquer outras diferenças se juntou, numa fila gigantesca, para prestar o último tributo a ela. Foi uma impressionante manifestação espontânea que dá a medida da estatura dela como figura pública.

UOL - Qual a influência dela no Brasil e na igreja Católica no Brasil?
Graciliano Rocha -
Com a canonização, o culto à Irmã Dulce deve ter um grande impulso, o que significa que igrejas dedicadas a ela vão surgir pelo país. Canonizações são decisões de cada papa e, de certa maneira, expressam a visão de cada pontífice sobre o papel na Igreja no mundo. Ao declarar a santidade de Irmã Dulce, o papa Francisco também faz uma homenagem aos valores que ela representou em vida, especialmente o do amor ao próximo. No fundo, a vida dela deixa um legado que transcende a religião, o do humanismo.