Mais de 24 mil desaparecidos em SP: famílias sofrem com falta de respostas
Resumo da notícia
- A cada 8 horas, uma pessoa desaparece no Brasil; paradeiro de 82 mil é desconhecido
- Dor, angústia e doença fazem parte da rotina de famílias em busca de parentes
- Risco maior de desaparecimento está nas periferias, afirma promotora
- Investigação só começa quando há suspeita de crime ou em casos que envolvam crianças e incapazes
Há 11 anos, o desaparecimento de Felipe Damasceno, 28, mudou a rotina da sua mãe, a dona de casa Lucineide da Silva Damasceno, 52. Desde 2017, a babá Damiana Pereira, 48, não sabe o paradeiro da filha Andressa de Jesus, 12. No mesmo ano, Samuel Gustavo, 21, sumiu sem deixar pistas, e à sua mãe, a auxiliar administrativa Maria Aureliana, 57, restou a dor. Todos são moradores da zona sul da capital paulista.
Felipe tinha 17 anos quando saiu de moto para ir até o Jardim Varginha, no extremo sul da cidade, na casa do colega Vinicius, também desaparecido no mesmo dia, e nunca mais voltou. Com 10 anos, Andressa brincava na rua de casa, no Campo Limpo, no dia em que desapareceu. Já Samuel foi a um festa entre amigos, no bairro do Grajaú, até que foi visto pela última vez andando pelos arredores de sua residência, mas não retornou.
Esses são 3 dos mais de 24 mil casos só na Grande São Paulo, de acordo com dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, divulgados em setembro de 2019. O sofrimento e a angústia fazem parte da rotina dessas famílias.
Lucineide, teve depressão logo após o sumiço de Felipe. Hoje trabalha tanto à procura de parceiros para a causa como em busca de informações de pessoas na mesma situação. Ela representa a ONG Mães da Sé na zona sul de São Paulo.
"A falta do Felipe me fez enxergar algo que jamais imaginei que pudesse acontecer comigo. Revi meu ciclo de amigos. Ergui minha cabeça e comecei a ajudar mães na mesma situação que a minha. Não podia ficar sofrendo em casa sem fazer algo por essa causa", disse.
Entre a dor e a esperança, a busca por respostas
Sem respostas, familiares mantêm a esperança em primeiro lugar, mas cobram mais empenho e apontam descaso do poder público em relação ao desaparecimento de seus entes.
"Me incomoda muito não ter uma resposta das autoridades. Não tomam atitude para nos ajudar. Não falo só no caso do meu filho, mas também em outras situações de desaparecidos. Precisam entender melhor o que é o desaparecimento. Com isso, irão começar a nos ajudar e orientar", afirmou Lucineide.
Ela é mãe de mais dois filhos, além de Felipe: Anderson, 18, e Amanda, 30. Neide, como prefere ser chamada, diz que, depois do sumiço de um de seus filhos, teve que parar de trabalhar. Hoje vive de trabalhos sazonais. "Minha vida mudou, principalmente em relação aos meus outros filhos. As datas festivas já não são mais as mesmas, sinto que falta algo, e é a presença dele", disse.
"Muita coisa me faz lembrar ele. O sorriso, o cuidado e o carinho que tinha comigo. Alegria dele era imensa quando chegava em casa e eu tinha feito seu bolo preferido de chocolate. A bagunça com sua irmã e com seus amigos. Tudo isso me faz falta. Era uma época boa"
Lucineide da Silva Damasceno, mãe de Felipe, desaparecido há 11 anos
Em relação ao desaparecimento de Felipe, a Secretaria de Segurança de São Paulo diz que, "durante os anos, a Polícia Civil realizou diligências e oitivas, porém a ocorrência continua em aberto".
Uma busca em cinco estados e nenhum rastro
A falta de resposta incomoda também Maria. Ela é mãe de três filhos: Saollo, Sandro, 24, e Samuel, 21. O primeiro se suicidou em 2013. Após quatro anos do ocorrido, Samuel desapareceu.
Maria já buscou seu filho mais novo em cinco estados e, mesmo com sua saúde debilitada, afirma que não vai desistir de encontrá-lo. "Se formos esperar pelas autoridades, nunca vamos ter nada. É uma busca incansável."
A dor é enorme. Ela sangra, desce quente, se espalha. Nós vivemos aqui pelo Samuel. Não temos mais vida, nem comemorações de fim de ano. Ele é só um menino. É tímido e de poucos amigos
Maria Aureliana, mãe de Samuel, desaparecido há dois anos
Irmão de Samuel, o analista de suporte Sandro Júnior diz que agiu de imediato para achar o irmão, mas sentiu falta do apoio das autoridades naquele momento. "Não tivemos apoio nenhum. Nós mesmos tivemos que ir atrás, sem recurso ou conhecimento. A falta de empatia também foi enorme, pessoas julgam sem saber. Ele não tinha motivos para sair de casa, tínhamos uma relação muito boa", afirma.
"Se fosse filho de rico, deputado ou artista, acho que já teriam achado. Falta interesse e comprometimento. Se é jovem, falam que estava envolvido com droga; se é adulto, afirmam que foi problema em casa. Até mesmo da polícia nós ouvimos isso", disse.
Sandro acredita que o irmão possa ter tido um "surto" causado por alguma droga colocada em sua bebida. Olhou as redes sociais de Samuel e não achou nada de suspeito. "Depois de um tempo, encontraram o celular dele, venderam para uma mulher, mas não temos nenhuma informação sobre essa investigação", disse.
Me chateia as pessoas que falam em 'pêsames'. Ele não está morto. Até que provem o contrário nós vamos manter ele vivo aqui e continuaremos buscando
Sandro Júnior, irmão de Samuel
Também sofrendo por conta do sumiço de Andressa, Damiana Pereira tenta se manter forte com a ajuda de seus outros três filhos: as gêmeas Raquel e Rafaela, 23, e Renan, 21. A babá diz que a polícia não dá nenhuma informação sobre o paradeiro de sua filha.
"[Os policiais] falam que ela não deixou rastros. Falo pela minha filha, não nos dão nenhum retorno. Só uma mãe sabe a dor de perder um filho, de não saber se está passando fome, se está bem", disse.
Damiana afirmou que buscou em diversos lugares alguma notícia de sua filha, mas sem respostas. "Procuramos em muitos locais: ruas, praças, terrenos e casas abandonadas. Colocamos cartazes, fizemos manifestações."
Andressa é uma menina muito inteligente, agitada, adora dançar, divertida. Sempre se deu bem como todos, principalmente na escola. A casa está silenciosa sem ela
Damiana Pereira, mãe de Andressa, desaparecida há dois anos
Questionada a respeito de Samuel e Andressa, a Secretaria de Segurança, "o DHPP [Delegacia de Homicídios e Proteção à Pessoa] instaurou um procedimento de investigação de desaparecido para apurar os casos. Equipes da unidade realizam buscas nos bancos de dados acessíveis à Polícia Civil e mantém diligências para procurar as vítimas e colher mais informações com familiares."
Investigação só para criança, incapaz ou suspeita de crime
No Brasil, há mais de 82 mil desaparecidos, segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Há cada hora, oito pessoas desaparecem no país, de acordo a entidade. O estado de São Paulo lidera o ranking.
O desaparecimento não é considerado um crime. Na polícia, o trâmite é a realização de um boletim de ocorrência e só há investigação se houver a suspeita de um crime, como homicídio ou sequestro, ou se o desaparecido for uma criança de até 12 anos ou uma pessoa considerada incapaz.
Segundo a secretaria, o boletim de ocorrência deve ser feito de imediato. "Agiliza as buscas pelo desaparecido. A delegacia insere a fotografia da vítima nos sistemas do estado, faz pesquisas de banco de dados da Polícia Civil e de outros órgãos, e comunica a Polícia Federal", diz a pasta.
O desaparecimento pode ser:
- Voluntário - quando a pessoa se afasta por vontade própria se deixar notícias, talvez por um desentendimento familiar, aflição ou planos de vida diferentes
- Involuntário - trata-se do afastamento da pessoa no cotidiano, talvez por acidente, problema de saúde ou desastre natural
- Forcado - quando a pessoa pode ter sofrido um sequestro ou por ação do próprio estado.
Para o MP-SP (Ministério Público de São Paulo), o crime organizado, tráfico de drogas e de pessoas e a violência doméstica não podem ser ignorados na busca de desaparecidos
Segundo dados levantados pelo UOL via LAI (Lei de Acesso à Informação), os homens são os que mais desaparecem na Grande São Paulo. Foram mais de 37 mil desaparecidos nos últimos três anos. Enquanto as mulheres foram pouco mais de 24 mil.
Risco maior está nas periferias, afirma promotora
Segundo a promotora de Justiça do MP-SP Eliana Vendramini que trabalha com o PLID (Programa de Localização e Identificação de Desaparecidos) desde 2010, a falta de recursos e de diálogo são dois dos principais fatores que faltam aos órgãos públicos para solucionarem os casos de desaparecidos.
"O estado tem que se organizar para que suas secretarias trabalhem conectadas com dados de pessoas desaparecidas. Há quem morre sem identificação, mas elas têm dados corporais e genéticos que podem ser colhidos para facilitar na localização. Poucos são recolhidos", disse.
Com a falta de lazer e entretenimento para jovens e crianças em muitas periferias, Vendramini afirma que o risco maior está nas comunidades mais carentes.
"Todo mundo pode sofrer isso um dia. Embora, os vulneráveis — negros e pobres da periferia, estão em maior risco. O mapa da exclusão social coincide com com o mapa do desaparecimento. Muito pela insegurança ali presente. Não que isso não aconteça, mas em bairros nobres a mobilização é maior", afirma.
À espera de respostas, famílias enfrentam doenças e separações
O impacto de um desaparecimento em uma família vai desde a saúde - afetando tanto o psicológico como o físico, até o econômico e jurídico — quando é o responsável pelas finanças da família desaparece ou ele tem que deixar de trabalhar, e também a falta de oportunidades no mercado de trabalho.
Para Larissa Leite, responsável pelo trabalho de acompanhamento de familiares de desaparecidos do CICV (Comitê Internacional da Cruz Vermelha), as atitudes tomadas pelos próprios familiares são justificadas por fatores conhecidos de "mecanismo de enfrentamento"— uma luta pela causa.
"A necessidade de saber o que aconteceu, mesmo que sem vida; a esperança em achar o ente querido bem; ter a certeza de que a investigação esteja em andamento: tudo isso é ativo, e muito por conta do baixo nível de confiança das famílias para com quem cuida das investigações", disse.
Não ter respostas sobre um parente acaba gerando diversos impactos: depressão, ansiedade, estresse emocional. Nem todos vão desenvolver essas doenças, mas devem ter um acompanhamento contínuo
Larissa Leite, do Comitê Internacional da Cruz Vermelha
O lado psicossocial também é um fator a ser acompanhado nessas famílias. Familiares de desaparecidos relatam que a relação com outros membros da família fica um pouco de lado, por conta da busca de quem está sumido. O envolvimento com drogas, com álcool e separações acontece após o desaparecimento de algum familiar.
"Quem está de fora não consegue ter a noção desse sofrimento. O Isolamento é frequente, e pessoas da própria família acabam questionando essa dor", disse Larissa.
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