Por "um bife": grupo passa horas à beira da estrada vigiando carga tombada
Resumo da notícia
- Com ganchos de frigorífico, máscaras e relatos de fome, população enfrentou riscos para tentar pegar parte da carga que tombou pela manhã
- Alta no preço da carne e desemprego eram motivos citados para a espera, que se estendeu pela tarde de hoje na rodovia
- Polícia dispersou a população que se aglomerava em volta do caminhão com uma bomba de gás lacrimogênio e spray de pimenta
- Saquear carga de caminhão tombado pode ser classificado como furto qualificado com até 8 anos de prisão
"Se caiu no chão, é do povo!" Este era o clamor das cerca de 50 pessoas que acompanhavam a retirada da carne de um caminhão tombado na Rodovia Regis Bittencourt, em São Paulo, na tarde desta terça (8). Com alguns ganchos de frigorífico, máscaras de proteção e relatos de fome, a população da região, na altura de Itapecerica da Serra, na Grande São Paulo, enfrentou riscos de exposição ao novo coronavírus, de prisão e de consumo de comida estragada para pegar uma parte da carga.
Acompanhadas pela polícia, parte das pessoas no local conseguiu pegar algumas peças pela manhã após o tombamento. Os demais passaram a tarde à beira da rodovia esperando por uma oportunidade.
Do outro lado da pista, onde a população se aglomerava — a maior parte usando máscaras —, vinham os pedidos: "Libera a carne! Só queremos comer um bife!", gritavam os presentes em uma mistura de questionamento, ironia e necessidade.
O mecânico Rogério, 62, deixou a oficina nas mãos do filho para acompanhar o acidente logo pela manhã. Em meio à pandemia, ele diz que os negócios estão piores do que nunca.
A última vez que comemos carne acho que foi no Natal! Você já viu o preço da carne? Compramos moída de terceira, quando dá. Se já estragou, por que não dar pra população?"
Rogério, 62, mecânico
"Só tem pai de família aqui — fora um ou outro elemento", acrescentou, com bom humor. Ele disse que, ao chegar, testemunhou algumas pessoas saindo com peças, mas que, para ele, "não sobrou nada".
A dona de casa Maria das Dores, 59, chegou ao local com os dois filhos na faixa dos 20 anos de idade no meio da manhã. Desapontada, ela diz que viu pessoas com peças, mas não conseguiu pegar.
O que eles vão fazer com essa carne? Me diga. Ninguém diz! Deviam dar pras pessoas. Eu sei fazer um bom uso dessa carne."
Maria das Dores, 59, em tom bem-humorado
Segundo funcionários do frigorífico e da seguradora, cerca de 30% das 25 toneladas de carga foram saqueados. A dona de casa questiona o dado. "Levaram poucas peças! Chuto uns 5% de tudo. Eles são assim, não dividem com o povo", disse, enquanto via outro caminhão da empresa ser abastecido pelo tombado.
"Se o cheiro estiver bom, corona é nada"
Cerca de 10 horas após o acidente, um grupo de aproximadamente 50 pessoas ainda esperava no local do acidente. Quase todos usavam máscaras, mas o medo de ser infectado pelo novo coronavírus não aparecia nos depoimentos como a principal preocupação dos presentes.
"Minha preocupação é a carne estar podre, [depois de] tanto tempo parada, né?", afirmou a manicure Nicolly, 22. Ela desmarcou um atendimento para ir ao local acompanhada de duas amigas. "Se a comida estiver boa, com um cheiro bom, corona é nada", afirmou a jovem.
Já Lúcia, desempregada desde o início da pandemia em março, alimenta os filhos com o salário mínimo do marido. Para ela, a situação seria uma oportunidade para ter carne na mesa de novo.
Tenho dois filhos para alimentar. Não precisava ser mais de uma peça, não. Uma só já dava pra gente."
Lúcia, desempregada
Lúcia chegou ao local por volta das 16h com o cunhado, Wesley, e um amigo. Segundo ela, eles colocaram dois isopores no porta-malas para levar a comida, mas não se arriscariam com a polícia. "Podiam deixar pegar, essa carne não tem nem uso mais para eles", lamentou. Wesley discordou. Cozinheiro em um restaurante em Itapecerica, ele afirma que ainda devem usar a carne para fazer carne de sol.
Hipóteses como essa circulavam entre as pessoas que acompanhavam a retirada da carne. "Ouvi da boca de um fiscal que eles iam lavar e vender de novo. O dono do frigorífico afirmou que eles poderiam vender", contou um dos homens que acompanhava a cena, mas que não quis se identificar.
Entre outros, circulava a informação de que a seguradora havia liberado o acesso a população à carga, mas a polícia havia impedido. Nenhuma das hipóteses foi confirmada pela reportagem.
Gás lacrimogêneo e spray de pimenta
A carga tombou pouco antes das 8h. O saque a mercadoria começou pouco depois. Não tardou para a Polícia Rodoviária Federal chegar. No meio da tarde, além da PRF, a GCM (Guarda Civil Metropolitana) e o BAEP (Batalhão de Ações Especiais da Polícia Militar) acompanhavam a situação.
Segundo relatos, no final da manhã a polícia dispersou a população que continuava a se aglomerar em volta do caminhão com uma bomba de gás lacrimogênio e spray de pimenta. Carlos Alberto, que trabalha no posto do sentido oposto ao acidente, disse que esse foi o único momento de tensão.
A população se alojou no local na expectativa de que, eventualmente, parte da carga ficasse livre.
"A polícia não tem mais o que fazer, não? Os verdadeiros bandidos ficam soltos e a população que quer comer é tratada como bandida", protestou a costureira Carla Regina, que esperava com o filho e o sobrinho.
Por volta das 17h, o BAEP atravessou a rodovia e tentou dispersar as pessoas que restavam, com escudos e fuzis. "Tô doido pra levar um hoje", a reportagem ouviu um policial dizer enquanto fazia a dispersão. Saquear carga de caminhão tombado pode ser classificado como furto qualificado com até 8 anos de prisão. Observar a ação, por outro lado, não é proibido.
Após as 18h, poucos ainda acompanhavam a retirada da carne, sob o acompanhamento da PRF e da PM.
"Só saio daqui quanto tirarem tudo. Vai que sobra alguma coisa", afirmou um jovem que não se identificou. De braços cruzados e uma máscara do Coringa, ele observava a ação do outro lado da rua.
* Alguns nomes e sobrenomes foram suprimidos a pedidos dos entrevistados.
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