Palavrões de Chico Anysio e piadas do Pasquim chocaram censores da ditadura
No dia 11 de agosto de 1977, uma censora da ditadura militar (1964-1985) foi até o Teatro da Lagoa, no Rio de Janeiro, assistir à peça "Ai? Quinto", de Chico Anysio, e saiu de lá "horrorizada" com o que viu. Em seguida, produziu um documento confidencial para o Serviço de Censura de Diversões Públicas, ligado à PF (Polícia Federal), em que relatou à chefia do órgão uma série de palavrões e críticas à situação social e política do país.
"Foi, sem dúvida, uma agressão à plateia no mais podre exercício linguístico de baixo calão", diz o documento no Arquivo Nacional, obtido pelo UOL.
Após o relato, e por ordem do chefe, a censora voltou para ver o espetáculo no dia 8 de setembro com uma ameaça de que, se aquilo se repetisse, Chico teria a peça censurada. "Contactamos [sic] com o artista, que se desculpou de haver no dia de nossa informação ter, talvez, se excedido na pornofonia, por empolgação da plateia", diz outro documento, seguindo ao dizer que Chico foi "relembrado" dos trechos que estava autorizado a interpretar.
O exemplo é só um de tantos que mostram a perseguição dos militares a artistas que trabalhavam com humor no período mais duro da ditadura, a partir do AI-5 (Ato Institucional número 5), editado em 1968. Piadas, charges ou qualquer insinuação cômica sobre a situação do país ou mesmo algo que deturpasse a moral e os bons costumes na visão do regime deveriam ser banidos.
Documentos confidenciais lidos pelo UOL revelam como o tema era visto com preocupação pelos militares, que evitaram que personagens ficassem conhecidos do público.
"Amigo da esquerda", Ziraldo teve trabalho vetado em comercial da Caixa
Um outro exemplo disso está em arquivo confidencial de setembro de 1974, em que o Ministério da Justiça determina suspender um comercial da Caixa Econômica Federal que usava o personagem "Jeremias, o Bom" do cartunista Ziraldo.
O motivo alegado era que "o referido humorista é suspeito de atividades ou, quando muito, de simpatizar com movimentos esquerdistas."
Com a ideia de não levar adiante os comerciais, o ministério decide "recomendar à Caixa Econômica não autorizar a Agência MPM - Propaganda S/A a promover a reutilização do personagem 'Jeremias, o Bom'. Além disso, quer nos parecer que o humorista ZIRALDO não é o único a ter condições de influenciar o grande público a adquirir bilhetes da Loteria Federal", diz documento assinado por Paulo Emílio Queiroz Barcelos, então subchefe do gabinete da pasta.
Muitas eram as formas de amordaçar o humor. A partir de 1970, com a instalação da censura prévia, era comum que scripts de peças fossem lidos, alterados, e a liberação de espetáculos só ocorresse após censores acompanharem os ensaios e apresentações para ver se tudo estava nos conformes do regime.
Em 1979, a Polícia Federal cita a ação do Estado contra uma peça teatral do grupo "Teatro Livre da Resistência", formado pelo diretório do estudantes de direito da UFS (Universidade Federal do Sergipe). A peça intitulada "A História do Poder", pois se tratava de "uma sátira ao regime revolucionário do país".
O Pasquim, censurado por ofender a moral, na visão do regime militar
Outro alvo era o jornal O Pasquim, formado por jornalistas e cartunistas. Em documento de agosto de 1970 localizado pelo UOL, o Ministério da Justiça revela descontentamento com reportagens do jornal que foi remetido ao Procurador-Geral da Justiça do Estado da Guanabara. Era comum que o folhetim, após sua edição já ter sido impressa, fosse recolhido das bancas.
Um dossiê sobre o jornal foi produzido, no qual os militares reconhecem que O Pasquim esteve "por dois períodos sob censura prévia" e teve "duas edições apreendidas (300 a 377) respondendo inquérito por atacar a moral e ofender o regime.
Mélanie Toulhoat é doutora em História pelas Universidades de São Paulo (USP) e Sorbonne Nouvelle, em Paris, e pós-doutoranda do LabEx HASTEC, na França, com tese sobre o humor gráfico no período da ditadura.
Segundo ela, os documentos da época mostram como os militares tentavam blindar o humor para manter uma imagem de mundo moralmente correto. "As anotações, feitas nos desenhos pelo censores, revelam muito a visão do mundo que os militares queriam proteger, e também revelam as contradições que o humor gráfico queria revelar", conta.
Ao contrário do que diz o folclore, censores eram preparados, diz pesquisadora
A tese de Toulhoat é que os cartunistas entraram nas pequenas brechas que o governo concedeu para ampliar o espaço de atuação. Por isso, em muitos momentos, eles furaram a censura e emplacaram materiais. "Claro que isso irritava os militares, que às vezes toleraram algumas manifestações pensando que ia ser algo tranquilo, mas que não era", diz.
Várias coisas tiravam os militares do sério, diz a doutora. Ela cita, por exemplo, as piadas de cunho sexual, ou ainda sobre racismo, repressão política ou mesmo a crise econômica.
Um ponto que a tese dela destrói é a ideia de que os censores eram facilmente enganados. "Isso é um mito. Os cartunistas que entrevistei, de certa maneira, relatam isso, mas essa construção não é fiel à realidade dos censores, que eram qualificados.", diz Mélanie.
Ela lembra que após 1970, quando a censura prévia foi instaurada, os censores começaram a viver diariamente dentro das redações —e isso foi um baque para quem produzia informação. Quem trabalhava com humor, por exemplo, começou a buscar soluções para driblar as restrições.
"O que rolava muitas vezes, além da violência óbvia desta situação, era uma certa intimidade com o passar do tempo entre o censor e as pessoas das redações, que passavam a conhecer gostos, tendências, vícios. E muitos se aproveitavam disso", afirma.
Em 1974, quando a censura prévia foi centralizada em Brasília, os títulos independentes passaram a ter mais dificuldade porque precisavam mandar suas obras para a capital federal. "Aí uma das estratégias foi colocar o conteúdo dentro de muitos papéis. Em vez de um cartunista mandar só as 10 charges que queriam passar, mandavam elas no meio de um material de 1.500 páginas, com muitas coisas que não tinham importância. Eles levavam em conta que os censores que não tinham tanto tempo assim e podiam deixar passar", explica.
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