Preconceito e diversidade vivem lado a lado na cidade mais indígena do país
Usando a câmera de autorretrato do celular como espelho, a indígena Penha Góes Figueiredo Yanomami, passa no rosto a pintura vermelha feita de urucum, uma tradição herdada de seu povo. O tingimento costuma ser usado nos dias de festa em sua aldeia, mas, desta vez, Penha Yanomami pinta o rosto sentada na rede da casa de apoio dos Yanomami em São Gabriel da Cachoeira, localizada ao Noroeste do Amazonas.
A vida na cidade não distanciou Penha Yanomami, 44, das tradições de seu povo. Nascida na aldeia de Maturacá, na Terra Indígena (TI) Yanomami, no Amazonas, ela trabalha como agente de saúde do Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI) do Alto Rio Negro. Mora há um ano e meio em São Gabriel da Cachoeira.
Não [estou aqui] porque eu quero, vim para trabalhar para o povo que precisa de mim como intérprete na cidade."
Penha, que estudou até a 6ª série e aprendeu o português na escola
Assim como Penha Yanomami, muitos indígenas vivem entre o ambiente urbano e as comunidades. Segundo estimativa de 2020 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), há 46.303 habitantes em São Gabriel da Cachoeira. O IBGE não divulgou números específicos de indígenas, mas estimativas locais calculam que indígenas representem aproximadamente 90% da população do município, considerando a área urbana e rural.
De acordo com o último censo, referente a 2010 — números atualizados só devem estar disponíveis em 2022 — 11 mil indígenas vivem na área urbana do município, o que representa 58% da população em área urbana.
No território de aproximadamente 110 mil quilômetros quadrados, convivem povos de 32 etnias indígenas, segundo o censo de 2010, muitas delas desconhecidas no restante do país, como os Koripako, Baniwa, Baré, Wanano, Piratapuya, Tukano, Dãw.
A maioria indígena no município, contudo, nem sempre se traduz em valorização da cultura ancestral. Em contraste à diversidade cultural e étnica, há relatos frequentes de indígenas sendo tratados de forma discriminatória no comércio local e em órgãos públicos.
O impacto cultural foi bastante grande para mim. Senti esse preconceito muito grande na escola: 'Olha aquela índia, não sabe falar'. Às vezes, queria falar direito e acabava errando mais. São Gabriel [da Cachoeira] é a cidade mais indígena [do Brasil], mas é preconceituosa."
ativista Adelina Sampaio Desana, que nasceu na Terra Indígena Balaio e se mudou para São Gabriel da Cachoeira em 2008 para estudar
Franci Baniwa, antropóloga e doutoranda da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), explica que a vivência dos indígenas no meio urbano envolve a estrutura hierárquica das próprias etnias, o processo histórico que levou muitas vezes à ruptura violenta dos indígenas com sua cultura e a convivência com pessoas vindas de fora que não conhecem bem a região.
Por outro lado, a antropóloga indígena aponta que, sobretudo a partir da promulgação da nova Constituição Federal em 1988, inicia-se um movimento de valorização da cultura local, o que reforça a autoestima e leva à autodeclaração de um número maior de indígenas.?
"Se você sai de uma comunidade, carrega uma vida toda, nossa roça, farinha, peixe, caça. Você carrega a sua vivência e [a] compartilha em um mundo que não é o seu. Eu sempre digo: ter o seu mundo e ter o conhecimento ocidental significa que você tem dois mundos em sua mão para crescer junto", diz.
Uma síntese do Brasil Indígena
Uma das principais crenças indígenas da região é que uma grande cobra canoa subiu as águas do Rio Negro para criar a humanidade, com as etnias se estabelecendo em determinados pontos considerados sagrados: pedras, cachoeiras, encontro de rios, entre outros.
O processo histórico da região é bastante complexo e envolve uma série de episódios violentos que impulsionaram movimentos migratórios dos indígenas. Os primeiros contatos com não-indígenas ocorreram ainda no século XVII, principalmente com os portugueses à procura de escravos, conforme consta no Mapa-Livro "Povos Indígenas do Alto e Médio Rio Negro", editado pelo Instituto Socioambiental (ISA) e pela Foirn.
Em 1760, um destacamento militar se estabelece na região e constrói um forte, dando início ao povoado que mais tarde recebeu o nome de São Gabriel da Cachoeira.
A história da região é marcada por ciclos econômicos e movimentos migratórios que impactaram o modo de vida dos indígenas, como o chamado ciclo da borracha, que durou até meados do século 20, explorando mão de obra indígena e ribeirinha. No início do século passado, religiosos católicos também reforçaram a presença colonizadora na região, proibindo o uso da língua indígena, aponta Franci Baniwa.
Apesar disso, a diversidade cultural resiste e se destaca no município. Além do português, São Gabriel da Cachoeira tem quatro línguas indígenas oficiais: Baniwa, Tukano, Nheengatu e Yanomami; é único município do país com cinco línguas oficiais.
"Somos indígenas originários. Como vamos ser não-indígenas? A pessoa nasce indígena e vai continuar a ser indígena", diz Cenaide Pastor Marques Lima Tuyuka, 43 anos, que se mudou para São Gabriel da Cachoreira na adolescência para estudar. Ele fala português, espanhol, Tuyuka, Tukano e Makuna e diz que atua como uma espécie de tradutor entre dois mundos, facilitando o acesso de seus parentes ao conhecimento de como viver na cidade, incluindo orientação sobre como providenciar documentos.?
* Reportagem adicional da estudante indígena Daniela Villegas Tukano (aluna do curso de estudos literários da Unicamp), Karla Mendes? e Rafael Dupim. O fotógrafo desta reportagem, Paulo Desana, também é indígena.
*Leia a íntegra da reportagem originalmente publicada e com mapas interativos no site da Mongabay.
*Esta reportagem faz parte do especial Indígenas nas Cidades do Brasil e recebeu financiamento do programa de jornalismo de dados e direitos fundiários do Pulitzer Center on Crisis Reporting.
Mapas: Ambiental Media / Juliana Mori.
Infográficos: Ambiental Media / Laura Kurtzberg.
Pesquisa e análise de dados: Yuli Santana, Rafael Dupim e Ambiental Media.
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