Indígenas em Brasília lutam por reconhecimento no centro do poder
Em abril de 1997, um líder indígena foi assassinato brutalmente na capital federal. Galdino Jesus dos Santos, 44, estava em Brasília para participar de manifestações exigindo a demarcação do território de seu povo Pataxó-Hã-Hã-Hãe, na Bahia.
Na noite de 20 de abril, ao voltar de uma reunião por volta da meia-noite, ele foi impedido de entrar na pensão onde estava hospedado e dormiu em um ponto de ônibus próximo ao local. Cinco jovens de famílias abastadas o viram sozinho. Eles jogaram gasolina em seu corpo e atearam fogo.
Galdino morreu horas depois, no hospital, com queimaduras em 95% do corpo. Era uma "brincadeira", seus agressores diriam mais tarde à polícia. Um juiz federal aceitou a alegação, inocentando quatro deles das acusações de homicídio e sentenciando o quinto, com 17 anos na época, a três anos de detenção juvenil pela acusação menor de lesão corporal. Dois dos agressores eram filhos de juízes.
Vinte e quatro anos depois, indígenas que vivem em Brasília ainda denunciam preconceito e violência.
Nascido em uma aldeia indígena no Amazonas, Irémirí Tukano conta que passou por inúmeros episódios de violência e discriminação desde que se mudou para Brasília, há 13 anos. Mas um em particular o magoou profundamente. Foi em 2012, quando trabalhava como estagiário no Ministério da Cultura.
"Uma vez eu fui entregar um documento na sede na Esplanada [dos Ministérios] e um dos servidores me perguntou se eu era indígena. Eu falei que sim. E ele falou assim: 'O que você está fazendo aqui? Você tem que voltar para o mato, você não tem nada para fazer aqui'", relembra Irémirí Tukano. "Isso me machucou muito. Hoje eu me lembro e carrego isso. Eu não quero que meus filhos passem por isso."
Graduado em eventos pelo Instituto Federal de Brasília (IFB) e estudante de turismo na UnB (Universidade de Brasília), Irémirí Tukano diz que só se sente "incluído" na cidade durante o Acampamento Terra Livre, a maior concentração indígena do país.
O evento, que reúne grupos de todo o Brasil e acontece em todo mês de abril, é o mesmo ao qual Galdino havia ido antes de sua morte. Desde que a pandemia de covid-19 estourou, em 2020, o evento tem ocorrido de forma remota, pela internet.
O povo tukano, que se autodenomina ye'pâ-masa ou daséa, é o grupo étnico mais numeroso na família linguística tukano oriental —com cerca de 4.600 indivíduos—, no norte do Amazonas. A história do contato entre os tukanos e não indígenas remonta ao século 18, atrelada a massivas incursões dos colonizadores portugueses em busca de escravos.
No final do século 19, missionários franciscanos e salesianos retiraram as crianças à força para serem educadas em escolas ou internatos, onde foram ensinadas a rejeitar os valores e modos de vida de seus pais, encorajadas a casar dentro de seus próprios grupos e proibidas a falar as línguas que lhes deram identidades múltiplas e interconectadas.
A luta de Irémirí Tukano pelo reconhecimento de sua identidade indígena é comum entre os indígenas que vivem em áreas urbanas em todo o Brasil.
Brasília foi construída na década de 1960 para substituir o Rio de Janeiro como capital do Brasil. Sua localização na região central do país quase não apresentava vida urbana, mas abrigava grupos indígenas, diz a antropóloga Thais Nogueira, da UnB. Muitos indígenas foram trabalhar na construção de Brasília, projeto que visava levar desenvolvimento ao interior do país.
Mas o papel dos povos indígenas e quilombolas na construção da nova capital do país foi praticamente apagado da história oficial. "Era rota de passagem", diz Nogueira. "Essa região inteira era região de presença indígena, sim. Com o passar do tempo, essa presença foi sendo apagada."
Cerca de 6.000 indígenas vivem na cidade hoje, segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), que usa os números de todo o Distrito Federal para Brasília. A família de Irémirí Tukano mora na região noroeste, a apenas alguns minutos de carro do Congresso Nacional. O local se tornou um dos bairros mais caros de Brasília na última década, com apartamentos cujos valores ultrapassam R$ 1 milhão.
A região noroeste de Brasília tem uma longa história de disputas de propriedade de terras envolvendo povos indígenas, construtoras e o governo do Distrito Federal. Na década de 1980, diz Nogueira, grupos indígenas pediram a demarcação de uma área que teria inviabilizado o projeto do bairro noroeste, conforme proposto pelo governo e construtoras.
A pressão sobre a área reivindicada, chamada de Santuário dos Pajés, se acirrou. Durante a construção do bairro, relata a antropóloga, tratores passaram até mesmo em cima de cemitérios indígenas e de outros sítios arqueológicos, com o intuito de apagar qualquer vestígio da presença indígena.
O objetivo, diz Nogueira, era "construir o ideal de Brasília moderna, apontando para o futuro, e deixar a visão agrícola e rural para trás, como se fosse uma mudança. E, para construir essa versão oficial, apaga-se tudo o que tem. Foi um apagamento proposital".
Batalha pela demarcação de terras
Após uma década de batalha judicial, em 2018, a Justiça reconheceu que havia uma ocupação indígena na área desde 1979 e ordenou a demarcação do Santuário dos Pajés, de 32 hectares, a única Terra Indígena (TI) demarcada em Brasília.
O entorno do Santuário dos Pajés também tem sido pleiteado por outros grupos indígenas para demarcação de seu território. O terreno de 12 hectares onde vive a família de Irémirí Tukano, por exemplo, também é reivindicado pelo povo kariri-xocó. Além disso, famílias da etnia tuxá também reivindicações semelhantes.
A maior parte do povo kariri-xocó vive na região do baixo São Francisco, entre Alagoas e Sergipe, no Nordeste, representando o que resta da fusão de vários grupos indígenas após séculos de aldeamento e catequese.
Seu cotidiano é muito semelhante ao da população rural de baixa renda, que comercializa sua mão de obra nas diversas atividades agropecuárias da região. No entanto, o grupo preserva suas raízes indígenas ao manter o ritual Ouricuri.
O povo tuxá vive principalmente em uma aldeia urbana na cidade de Rodelas, no nordeste da Bahia. Também ocupavam a Ilha da Viúva, no rio São Francisco, em um pequeno território agrícola, mas a ilha foi submersa pela construção da hidrelétrica de Itaparica na década de 1980.
Em nota, o governo do Distrito Federal disse que está doando essas áreas ao governo federal, que tem o poder de demarcar terras indígenas. O processo, porém, pode levar anos.
O nome indígena Irémirí Tukano está em seus documentos oficiais porque seu pai, Álvaro Tukano, lutou para registrá-lo no momento de seu nascimento. A irmã de Irémirí não teve tanta sorte; o pai não estava presente em seu nascimento e ela foi registrada com nome brasileiro, Shirlene. Seu nome indígena é Yepário Tukano.
Os povos indígenas só conquistaram o direito de registrar seus nomes nativos no Brasil em 2012, mais de uma década após o nascimento dos irmãos Tukano. A mudança ocorreu após pressão do Ministério Público Federal e do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
* Este projeto recebeu financiamento do programa de jornalismo de dados e direitos fundiários do Pulitzer Center on Crisis Reporting. Leia a íntegra da reportagem originalmente publicada no site da Mongabay.
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