Indígenas em Brasília lutam por reconhecimento no centro do poder
![Irémirí Tukano e sua irmã, Shirlene, que não foi registrada com nome indígena porque seu pai não estava presente - Fellipe Neiva/Mongabay](https://conteudo.imguol.com.br/c/noticias/93/2021/05/24/pauta-sobre-indios-em-brasilia-do-mongabay-1621890122084_v2_900x506.jpg)
Em abril de 1997, um líder indígena foi assassinato brutalmente na capital federal. Galdino Jesus dos Santos, 44, estava em Brasília para participar de manifestações exigindo a demarcação do território de seu povo Pataxó-Hã-Hã-Hãe, na Bahia.
Na noite de 20 de abril, ao voltar de uma reunião por volta da meia-noite, ele foi impedido de entrar na pensão onde estava hospedado e dormiu em um ponto de ônibus próximo ao local. Cinco jovens de famílias abastadas o viram sozinho. Eles jogaram gasolina em seu corpo e atearam fogo.
Galdino morreu horas depois, no hospital, com queimaduras em 95% do corpo. Era uma "brincadeira", seus agressores diriam mais tarde à polícia. Um juiz federal aceitou a alegação, inocentando quatro deles das acusações de homicídio e sentenciando o quinto, com 17 anos na época, a três anos de detenção juvenil pela acusação menor de lesão corporal. Dois dos agressores eram filhos de juízes.
Vinte e quatro anos depois, indígenas que vivem em Brasília ainda denunciam preconceito e violência.
Nascido em uma aldeia indígena no Amazonas, Irémirí Tukano conta que passou por inúmeros episódios de violência e discriminação desde que se mudou para Brasília, há 13 anos. Mas um em particular o magoou profundamente. Foi em 2012, quando trabalhava como estagiário no Ministério da Cultura.
"Uma vez eu fui entregar um documento na sede na Esplanada [dos Ministérios] e um dos servidores me perguntou se eu era indígena. Eu falei que sim. E ele falou assim: 'O que você está fazendo aqui? Você tem que voltar para o mato, você não tem nada para fazer aqui'", relembra Irémirí Tukano. "Isso me machucou muito. Hoje eu me lembro e carrego isso. Eu não quero que meus filhos passem por isso."
Graduado em eventos pelo Instituto Federal de Brasília (IFB) e estudante de turismo na UnB (Universidade de Brasília), Irémirí Tukano diz que só se sente "incluído" na cidade durante o Acampamento Terra Livre, a maior concentração indígena do país.
O evento, que reúne grupos de todo o Brasil e acontece em todo mês de abril, é o mesmo ao qual Galdino havia ido antes de sua morte. Desde que a pandemia de covid-19 estourou, em 2020, o evento tem ocorrido de forma remota, pela internet.
O povo tukano, que se autodenomina ye'pâ-masa ou daséa, é o grupo étnico mais numeroso na família linguística tukano oriental —com cerca de 4.600 indivíduos—, no norte do Amazonas. A história do contato entre os tukanos e não indígenas remonta ao século 18, atrelada a massivas incursões dos colonizadores portugueses em busca de escravos.
No final do século 19, missionários franciscanos e salesianos retiraram as crianças à força para serem educadas em escolas ou internatos, onde foram ensinadas a rejeitar os valores e modos de vida de seus pais, encorajadas a casar dentro de seus próprios grupos e proibidas a falar as línguas que lhes deram identidades múltiplas e interconectadas.
A luta de Irémirí Tukano pelo reconhecimento de sua identidade indígena é comum entre os indígenas que vivem em áreas urbanas em todo o Brasil.
Brasília foi construída na década de 1960 para substituir o Rio de Janeiro como capital do Brasil. Sua localização na região central do país quase não apresentava vida urbana, mas abrigava grupos indígenas, diz a antropóloga Thais Nogueira, da UnB. Muitos indígenas foram trabalhar na construção de Brasília, projeto que visava levar desenvolvimento ao interior do país.
Mas o papel dos povos indígenas e quilombolas na construção da nova capital do país foi praticamente apagado da história oficial. "Era rota de passagem", diz Nogueira. "Essa região inteira era região de presença indígena, sim. Com o passar do tempo, essa presença foi sendo apagada."
Cerca de 6.000 indígenas vivem na cidade hoje, segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), que usa os números de todo o Distrito Federal para Brasília. A família de Irémirí Tukano mora na região noroeste, a apenas alguns minutos de carro do Congresso Nacional. O local se tornou um dos bairros mais caros de Brasília na última década, com apartamentos cujos valores ultrapassam R$ 1 milhão.
A região noroeste de Brasília tem uma longa história de disputas de propriedade de terras envolvendo povos indígenas, construtoras e o governo do Distrito Federal. Na década de 1980, diz Nogueira, grupos indígenas pediram a demarcação de uma área que teria inviabilizado o projeto do bairro noroeste, conforme proposto pelo governo e construtoras.
A pressão sobre a área reivindicada, chamada de Santuário dos Pajés, se acirrou. Durante a construção do bairro, relata a antropóloga, tratores passaram até mesmo em cima de cemitérios indígenas e de outros sítios arqueológicos, com o intuito de apagar qualquer vestígio da presença indígena.
O objetivo, diz Nogueira, era "construir o ideal de Brasília moderna, apontando para o futuro, e deixar a visão agrícola e rural para trás, como se fosse uma mudança. E, para construir essa versão oficial, apaga-se tudo o que tem. Foi um apagamento proposital".
Batalha pela demarcação de terras
Após uma década de batalha judicial, em 2018, a Justiça reconheceu que havia uma ocupação indígena na área desde 1979 e ordenou a demarcação do Santuário dos Pajés, de 32 hectares, a única Terra Indígena (TI) demarcada em Brasília.
O entorno do Santuário dos Pajés também tem sido pleiteado por outros grupos indígenas para demarcação de seu território. O terreno de 12 hectares onde vive a família de Irémirí Tukano, por exemplo, também é reivindicado pelo povo kariri-xocó. Além disso, famílias da etnia tuxá também reivindicações semelhantes.
A maior parte do povo kariri-xocó vive na região do baixo São Francisco, entre Alagoas e Sergipe, no Nordeste, representando o que resta da fusão de vários grupos indígenas após séculos de aldeamento e catequese.
Seu cotidiano é muito semelhante ao da população rural de baixa renda, que comercializa sua mão de obra nas diversas atividades agropecuárias da região. No entanto, o grupo preserva suas raízes indígenas ao manter o ritual Ouricuri.
O povo tuxá vive principalmente em uma aldeia urbana na cidade de Rodelas, no nordeste da Bahia. Também ocupavam a Ilha da Viúva, no rio São Francisco, em um pequeno território agrícola, mas a ilha foi submersa pela construção da hidrelétrica de Itaparica na década de 1980.
Em nota, o governo do Distrito Federal disse que está doando essas áreas ao governo federal, que tem o poder de demarcar terras indígenas. O processo, porém, pode levar anos.
O nome indígena Irémirí Tukano está em seus documentos oficiais porque seu pai, Álvaro Tukano, lutou para registrá-lo no momento de seu nascimento. A irmã de Irémirí não teve tanta sorte; o pai não estava presente em seu nascimento e ela foi registrada com nome brasileiro, Shirlene. Seu nome indígena é Yepário Tukano.
Os povos indígenas só conquistaram o direito de registrar seus nomes nativos no Brasil em 2012, mais de uma década após o nascimento dos irmãos Tukano. A mudança ocorreu após pressão do Ministério Público Federal e do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
* Este projeto recebeu financiamento do programa de jornalismo de dados e direitos fundiários do Pulitzer Center on Crisis Reporting. Leia a íntegra da reportagem originalmente publicada no site da Mongabay.
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