Metralhadora e gás: na pandemia, avanço do garimpo leva morte a ianomâmis
Desde o dia 10 de maio um clima de medo assombra os indígenas ianomâmis da Comunidade Palimiú, localizada às margens do rio Uraricoera, no município de Alto Alegre (RR). O ataque de garimpeiros já provocou a morte de duas crianças e, no último domingo às 21h30, a aldeia foi alvo de mais uma investida de homens armados, que desta vez lançaram bombas de gás lacrimogêneo.
Parte da Terra Indígena Yanomami, a maior reserva indígena em extensão territorial do Brasil, a comunidade relata que o ataque tem sido realizado em retaliação à barreira sanitária instalada pela população há cerca de seis meses. Ao tentar impedir o avanço da covid-19 no território, a barreira impediu também a entrada de garimpeiros, que já tiveram galões de gasolina e quadriciclos apreendidos.
Desde então, a tensão cresceu até explodir na semana passada e prosseguir em confrontos diários. "Todos os dias, a comunidade enfrenta um movimento de intimidação dos garimpeiros. Não tem tranquilidade", afirma Dário Kopenawa, vice-presidente da Hutukara Associação Yanomami (HAY) à reportagem.
Em ofício emitido pela HAY nesta segunda (17), os indígenas relatam que a última invasão contou com 15 barcos de garimpeiros, que atacaram a comunidade com tiros e bombas de gás lacrimogêneo. Ainda segundo o documento, assinado por Kopenawa, "os ianomâmis gritavam de preocupação ao telefone. Ao fundo, era possível escutar o som dos tiros".
No documento, a associação solicita com urgência a instalação de um posto emergencial na comunidade para garantir a segurança no local e do apoio logístico do Exército Brasileiro, por meio da 1ª Brigada de Infantaria da Selva. A comunidade está sem profissionais de saúde e sem força policial, e os moradores seguem abalados e em clima de tensão.
Ocupando mais de 9 milhões de hectares, distribuídos entre os estados do Amazonas, Roraima e parte da Venezuela, o território ianomâmi é alvo do garimpo ilegal de ouro desde a década de 1980. Nos últimos anos, a busca pelo minério se intensificou. Dados do Instituto Socioambiental (ISA), ONG que acompanha a situação indígena, apontam que, em 2019, existiam 534 pedidos de pesquisa para exploração de minérios na região, fazendo dela a terra indígena campeã em requerimentos minerários.
Metralhadoras
De acordo com os relatos dos indígenas, os garimpeiros percorrem diariamente o trecho do rio Uraricoera que passa pela Comunidade Palimiú, e demonstram estar fortemente armados. Segundo a agência de jornalismo investigativo Amazônia Real, os responsáveis pelo ataque possuem ligação com o PCC (Primeiro Comando da Capital), que domina o tráfico de drogas em Roraima e também opera nos garimpos ilegais de ouro.
A série dos ataques mais recentes começou às 11h do dia 10 de maio, quando garimpeiros a bordo de sete barcos abriram fogo contra a comunidade. Um vídeo divulgado no mesmo dia mostra o momento do tiroteio, seguido da correria de mulheres e crianças assustadas. Segundo Kopenawa, os invasores "usaram armas pesadas, como metralhadoras". Como houve revide, o confronto resultou em cinco garimpeiros e um indígena baleados de raspão.
Os disparos motivaram o primeiro ofício enviado pela HAY a Polícia Federal, Exército, Funai e Ministério Público de Roraima. Naquele momento, a associação já pedia "urgência para impedir a continuidade da espiral de violência" e "segurança para a comunidade". As imagens dos primeiros confrontos foram feitas por profissionais do Distrito Sanitário Especial Indígena Yanomami (Dsei-Y), que foram retirados da região após a violência começar.
No dia seguinte (11), a Polícia Federal foi até o local e trocou tiros com os garimpeiros. O ataque resultou na morte de duas crianças, de um ano e cinco anos. No momento da fuga, elas se perderam na mata. Seus corpos só foram encontrados no rio no dia seguinte, explica Kopenawa. "Nossos parentes procuraram e resgataram as crianças no mato, mas faltaram duas, que caíram na água e se afogaram", diz.
Ainda segundo os indígenas da comunidade, o Exército esteve no território na quarta (12), mas ficou apenas duas horas no local. Na noite do mesmo dia, por volta das 23h, a comunidade foi invadida novamente. Desta vez, eram cerca de 40 barcos com garimpeiros, que voltaram a atirar.
No dia 12, a Justiça Federal acatou parcialmente o pedido do Ministério Público Federal e determinou que a União "mantenha efetivo armado de forma permanente na comunidade Palimiú para evitar novos conflitos e garantir a segurança de seus integrantes". A ação civil pública foi ajuizada no ano passado e pedia a retirada dos garimpeiros da região.
Até o momento, porém, a comunidade afirma seguir sem assistência. Procurados pela reportagem, a PF e o Exército não responderam.
Em nota, a Funai informou que "segue acompanhando" a situação, mas que "não comenta apurações em curso" nem "compactua com qualquer conduta ilícita, bem como com juízos açodados, emitidos antes que seja concluída a rigorosa apuração dos fatos pelos órgãos competentes".
No sábado (15), as lideranças ianomâmis falaram publicamente pela primeira vez dos ataques sofridos. No dia seguinte, houve novos ataques.
Medo de massacre
Para Sonia Guajajara, coordenadora executiva da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), a preocupação é que a escalada de tensão leve a uma nova matança.
É um cenário desolador, com crime organizado, mortes de crianças, surtos de malária, covid-19, contaminação dos rios, insegurança alimentar e falta de assistência médica. Como se não bastasse tudo isso, a violência é cada vez mais intensa, o que nos leva a temer a possibilidade iminente de um novo massacre"
Sonia Guajajara
Não é de hoje que a Terra Indígena Yanomami sofre com conflitos armados consecutivos. Demarcada somente em 1992, após anos de luta, a região é palco de disputa histórica entre povos originários, garimpeiros e outros invasores. Segundo linha cronológica traçada pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), com base nos registros do Centro de Documentação Dom Tomás Balduino (CEDOC), o povo ianomâmi resiste à invasão desde 1700.
Apenas entre 1987 e 2013, foram quatro os massacres, que vitimaram 30 indígenas em Roraima. No mais antigo deles, 150 garimpeiros armados com espingardas invadiram o território. O confronto na serra de Couto Magalhães (RR) deixou sete indígenas mortos e outras 47 pessoas feridas.
Em 1993, ocorreu o chamado Massacre de Haximu, na fronteira com a Venezuela, que vitimou cinco crianças e cinco adultos, entre mulheres e idosos, pegos de surpresa pela invasão armada. Já em 2013, a região de Alto Alegre (RR) também foi palco de um confronto com armas de fogo, que deixou cinco mortos e sete feridos.
Além dos massacres e outros episódios de violência, a CPT também aponta a vulnerabilidade da população Yanomami ao longo do tempo, acometida por males como a malária, tuberculose, entre outros, por conta do contato com os brancos.
Embora históricas, as invasões ilegais se intensificaram no último ano, mesmo durante a pandemia de covid-19. O relatório "Cicatrizes na Floresta", levantamento realizado pela HAY e pela Associação Wanassduume Ye'kwana, com assessoria técnica do ISA, e publicado em março de 2021, aponta que o garimpo avançou 30% na Terra Indígena Ianomâmi entre janeiro e dezembro de 2020.
Segundo o órgão, essa área desmatada corresponde a 2.400 hectares, o equivalente a 500 campos de futebol. Mais da metade da região devastada se concentra nas margens do rio Uraricoera.
Ainda em março, por ocasião do lançamento do relatório, Davi Kopenawa, pai de Dário, já demonstrava a preocupação crescente com o avanço dos invasores.
O garimpeiro não está sozinho, são grandes grupos, andam armados. Aqui em Roraima, os garimpeiros, empresários e políticos não respeitam os povos indígenas, só querem tirar as nossas riquezas"
Davi Kopenawa, presidente da Hutukara Associação Yanomami
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