"Minha vocação morreu", diz ex-monge que acusa padre de violência sexual
Depoimento a Maria Carolina Trevisan e José Dacau
Colunista do UOL e do UOL, em Monte Sião (MG)
03/10/2021 07h00
Em depoimento à reportagem, ex-monge relata os abusos sexuais cometidos pelo padre Ernani Maia dos Reis, no Mosteiro Santíssima Trindade, em Monte Sião, interior de Minas Gerais.
O padre nega as acusações. A Igreja Católica afirma que não se omitiu, mas o ex-monge afirma que não recebeu qualquer ajuda da instituição.
O papa Francisco desligou Ernani da Igreja Católica, um dia depois da publicação da reportagem do UOL, que revelou o caso com exclusividade. A apuração do núcleo investigativo também resultou no documentário "Nosso Pai", lançado por MOV, o selo de produções audiovisuais do UOL.
O MP-MG (Ministério Público de Minas Gerais) determinou que Ernani seja investigado pela Polícia Civil do estado.
Um dos mais novos do mosteiro
"Eu era do grupo dos mais novos entre os monges da Santíssima Trindade, em Monte Sião, interior de Minas Gerais.
Três vezes por semana havia o atendimento. Levei três anos para iniciar os atendimentos, primeiro com pais e crianças. As pessoas queriam falar de si. Botar para fora. Era um trabalho gratificante, transformador. Foram várias as histórias que marcaram a minha vida.
Os atendimentos estavam sempre lotados, não só com gente da cidade. Tinha até mais gente de fora de Monte Sião que ia só para o atendimento.
Mas existia um problema com o padre Ernani Maia dos Reis, que era o abade. Sempre existiu. No começo, a gente não enxergava. Ele era visto como algo especial, diferente das outras pessoas, eu tinha até receio de chegar perto. Havia uma certa veneração. As regras vieram dele, a espiritualidade surgiu dele, o carisma veio dele.
No começo eu não tinha tanto contato com o Ernani. Vivíamos na clausura, dividíamos a cela [dormitório do monge] entre dois ou três. Ernani tinha uma casa separada. A casa do abade. Essas coisas, no começo, como eu estava tão encantado com tudo o que eu estava vivendo, eram indiferentes para mim.
Eu sempre fui uma pessoa muito fechada para falar de mim. Tinha medo de me expor. Então, o Ernani se aproximou de mim justamente aí. Ele pegou a minha dificuldade e começou a se colocar à disposição para conversar. Ele dizia que a comunidade percebia que tinha algo que eu não falava. Ele sempre usava a comunidade.
No começo aquilo me amedrontava. O que eu vou fazer? Vou falar de mim? Um dia ele me chamou para conversar e eu consegui me abrir totalmente. Foi uma conversa muito boa. Eu sempre tive problema com relação a minha sexualidade, por eu ser gay. Eu via dentro de mim como algo errado, uma pessoa suja. Era algo que ninguém sabia. Então, ele me fez sentir uma confiança.
Sexualidade exposta
Quando eu contei da minha sexualidade, ele agiu de maneira muito tranquila, não se assustou com o que eu falei, com os meus medos e meus desejos. Como essa questão era um tabu e eu coloquei tudo naquela conversa, vi uma acolhida muito grande. Isso mexeu comigo. Foi quando eu comecei a me aproximar dele.
Contei tudo a ele. Que eu tinha medo dos meus desejos, de me relacionar com homem, contei de fantasias sexuais que eu tinha na época, e ele agiu de uma forma muito natural. Então, algo mudou dentro de mim. Uma aceitação que eu precisava dar a mim mesmo. A aceitação dele fez com que eu olhasse para mim de forma diferente.
Acabei me aproximando muito de Ernani. Ele me acolheu, disse que não tinha problema eu ser quem eu sou, sentir desejo, que não havia nada de errado comigo, que poderia ter uma vida religiosa e canalizar esses desejos. Isso me libertou.
Um ano depois, o Ernani começou a fazer o curso de psicanálise e se ofereceu para me analisar. A partir daí, todas as ideias que eu tinha sugerido, da padaria e da chocolateria, foram sendo consolidadas. Eu percebi que quanto mais eu me aproximava dele, mais benefícios eu ganhava.
Ernani fazia as compras para o mosteiro, ficava dois ou três dias fora e levava um irmão [os monges costumam chamar uns aos outros de irmãos]. Um dia ele me chamou para ir com ele. Na primeira viagem a Campinas (SP), ele perguntou o que eu tinha sentido depois daquela conversa. Falei que tinha sido libertador. Então, ele passou a fazer perguntar sobre os meus desejos. Ele disse que tinha muita coisa ainda reprimida dentro de mim, que precisava colocar para fora.
Eu me aproximei dele e comecei a ter regalias que os outros monges não tinham. Toda vez que a gente ia conversar, ele sempre abria um vinho para beber. Eu gostava mas me deixava constrangido. Eu não conseguia entender. Nos outros mosteiros, o primeiro a dar o exemplo era quem estava na frente.
Na terceira viagem que fizemos, ele sugeriu dormir em Campinas depois que fomos a um restaurante open bar e eu bebi três drinks. Estávamos mais íntimos, eu tinha compartilhado muitas coisas sobre mim, sobre as minhas dificuldades. A gente parou no hotel e não tinha lugar. E aí ele falou que tínhamos de ficar num motel. Lá só tinha cama de casal. Eu deitei com ele e senti uma coisa estranha.
Percebi que ele estava mais aberto, carinhoso, de vez em quando passava a mão na minha cabeça, na minha perna. Eu brigava com o sentimento dentro de mim, com o desejo. Ele tomou banho e depois eu fui.
Quando eu voltei, ele estava deitado só de cueca. Eu achei estranho, até então a gente nunca tinha tido essa intimidade, ele começou a fazer perguntas sobre as minhas fantasias, que eu já tinha contado a ele. Queria saber se eu tinha vontade de fazer com ele.
Eu me assustei com aquilo. Ele começou a me acariciar, passou a mão em mim. Saí de lá e fiquei muito mal, fiquei péssimo. Porque foi além. Foi além das coisas que eu tinha prometido, da castidade. Eu fiquei muito ruim. Só que eu não podia comentar com ninguém.
No outro dia a gente foi embora. Ele pediu desculpas, disse que não aconteceria de novo. Eu tinha que chegar no mosteiro como se nada tivesse acontecido. Não comentei com ninguém.
Vivi isso e ao mesmo tempo fiquei com medo. Eu queria falar, queria expor, mas eu não podia. A partir desse momento, começou uma luta dentro de mim. Porque ele queria se aproximar cada vez mais. Toda noite ele me chamava na casa dele. Eu chegava lá e ele tinha aberto um vinho, estava de cueca. Sempre tentava alguma coisa.
Eu estava no meu limite. Ele falou: "Você tem que tomar cuidado porque você está se afastando de mim. Isso vai fazer muito mal para você com relação a sua cura."
Eu sempre tive dificuldade de confiar, de me entregar para as pessoas, de um relacionamento mais profundo. Ernani dizia que ele ia me dar isso, que a cura estava nele.
Cada vez eu ia ficando pior. As pessoas começaram a perceber que eu estava mais calado, que não conversava, estava deprimido mesmo. Eu falava que era crise de vocação.
Um dia falei para ele que não sabia se queria continuar. Foi uma conversa muito difícil. Ele jogou muita coisa na minha cara. Que se saísse nunca ia dar certo aqui fora, que seria um pervertido, que nunca ia conseguir ter alguém, que a única coisa que ia me sobrar era ser um garoto de programa.
Saída prorrogada
Fui prorrogando a saída. E me afastei. Eu não conseguia mais ter esse relacionamento com ele. A comunidade enxergava como se eu estivesse errado, que eu estava fugindo de uma coisa boa. Mas ninguém sabia o que ele tinha feito, o que tinha acontecido. Eu queria conversar com alguém e ao mesmo tempo ficava com medo de ninguém acreditar em mim, de ele inverter a situação e eu sair como o errado.
Foi muito triste, esse tipo de situação foi matando as outras coisas dentro de mim. Tudo foi morrendo. Vivi isso em solidão.
Nunca mais entrei na casa dele quando ele estava sozinho. Se ele queria conversar eu tentava um lugar aberto. Ele abusava do poder dele. E usava do poder que ele tinha sobre mim, das minhas feridas e tudo o que eu coloquei nas mãos dele.
Eu tinha medo de sair. Carreguei isso por três anos. Foi um período de total solidão. Sentimentos de depressão, de estar sem sentido na vida, de tudo cair. Era um pesadelo ficar ali no meio deles. Vinham os atendimentos e eu não me sentia na posição de poder ajudar as pessoas. Eu me sentia falso e mentiroso. Então isso foi morrendo, todo o encanto foi caindo.
Decidi ir embora. Eu tinha que comunicar a ele. Ernani disse que eu estava jogando a minha vocação fora, que eu não ia conseguir ser alguém na vida, que era sair dali e tudo ia acabar. Tentou jogar um monte de angústia. Eu estava decidido.
Fui para o meu quarto, falei que queria conversar com meus irmãos, fui chamando cada um. Essa hora foi muito difícil, muito triste, um dos piores dias da minha vida. Era como se tivesse arrancado um pedaço de mim. O amor é muito grande por cada um dos irmãos. Aquilo parecia um velório.
Abuso emocional e sexual
Hoje, quatro anos depois, eu vejo um total abuso emocional e sexual. O que eu tinha de mais precioso eu coloquei na mão dele e ele se aproveitou. Vejo como a manipulação foi grande, um tipo de lavagem cerebral, como zumbis vivendo lá. Percebo o tanto que ele me fez mal e danificou a minha vida.
Demorou um bom tempo para eu me libertar. Eu via que essa manipulação me impedia de aceitar a felicidade, de aceitar as coisas boas e as conquistas. Tudo ia para um lado de medo. Será que eu sou capaz?
Com o tempo, com a ajuda da minha família e de um psicólogo, fiz novas amizades, passei no vestibular, vi que eu consigo. Cada etapa que eu fui vivendo depois, foi me libertando, me mostrando que todas as coisas que ele falava eram mentiras.
Hoje tenho um relacionamento muito bom, estou feliz, a gente se dá super bem, ao contrário do que ele dizia. Agora as frases dele não têm poder nenhum.
Minha vocação morreu, minha fé ficou abalada. Relacionei tudo o que vivi com Ernani a Deus. Depois as coisas foram acontecendo de uma maneira tão diferente do que ele dizia que consegui enxergar Deus. Nasceu uma nova fé.
Nunca recebi auxílio do bispo ou da diocese. Desse tempo, o único apoio que recebi foi dos meus irmãos."
Veja o segundo episódio do documentário "Nosso Pai":