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Vítimas de padre Ernani Maia dos Reis relatam sofrer sequelas psicológicas

Maria Carolina Trevisan e José Dacau

02/10/2021 07h00

Monges e monjas afirmam sofrer sequelas psicológicas em decorrência do assédio moral e da violência sexual que atribuem ao ex-padre Ernani Maia dos Reis, que liderava o Mosteiro Santíssima Trindade, em Monte Sião (MG).

O papa Francisco desligou Ernani da Igreja Católica, um dia depois da publicação da reportagem do UOL, que revelou o caso com exclusividade. A apuração do núcleo investigativo também resultou no documentário "Nosso Pai", lançado por MOV, o selo de produções audiovisuais do UOL.

O MP-MG (Ministério Público de Minas Gerais) determinou ontem que Ernani seja investigado pela Polícia Civil mineira.

Vítimas fragilizadas

Aqueles que tiveram o papel de cuidar dos monges que ficaram na comunidade depois da saída de Ernani, ocorrida em meados de 2018, contam que encontraram pessoas muito abaladas. Estavam extremamente fragilizadas, com a saúde precária e até um certo grau de infantilização decorrente do período de isolamento.

Integrantes da Igreja Católica que participaram da investigação interna relataram "choros desesperados" dos religiosos do mosteiro, durante os depoimentos dados na investigação interna.

Procurado na cidade de Franca (SP), em duas oportunidades, o o agora ex-padre Ernani negou que tenha cometido qualquer crime sexual, mas não quis gravar uma entrevista nem ouvir as perguntas específicas da reportagem.

Em sua resposta, a Igreja Católica afirmou que não se omitiu e prestou atendimento psicológico aos religiosos que continuaram no mosteiro.

Veja a resposta completa neste link: https://download.uol.com.br/files/2021/09/868470500_resposta-da-igreja-catolica.pdf

antiga sede - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Antiga sede do mosteiro da Santíssima Trindade, em Monte Sião (MG)
Imagem: Arquivo Pessoal

Perda de vocação

As vítimas contam que sofrem ainda com perda da vocação, pânico de entrar na igreja, dificuldade de relacionamento, despreparo profissional para reinserção na sociedade, falta de conhecimento de detalhes da própria vida como o número do calçado, desconfiança e vontade de morrer, afirmam ex-monges entrevistados pelo UOL. Para alguns, até Deus perdeu o lugar.

"O Ernani é um fantasma que me assombra", revela a vítima 5, que sofreu assédio sexual do padre.

"Quando tudo aconteceu, eu estava fragilizado a ponto de cometer um suicídio. Eu luto contra isso todos os dias até hoje. Já andei muito, mas esse inferno continua dentro de mim."

A cúpula da Igreja Católica tinha conhecimento dessa situação, como mostra email enviado pelo arcebispo de Pouso Alegre (MG), Dom José Luiz Majella Delgado, a uma das ex-monjas, que afirmam que sofreram humilhações e agressões verbais.

"Lamento por tanto sofrimento passado no Mosteiro que, com certeza, destruiu o seu sonho vocacional", escreveu o arcebispo.

monja - Reprodução - Reprodução
Email enviado pelo arcebispo de Pouso Alegre, Dom Majella a uma ex-monja do Mosteiro Santíssima Trindade
Imagem: Reprodução

Processo lento

Casos de violência sexual e psicológica como os descritos no mosteiro de Monte Sião ocorrem em processos lentos e sucessivos, que envolvem manipulação, poder e confiança. Em situações como essas, as vítimas levam um tempo até compreenderem que estão sob abuso. Vivem com culpa, medo e vergonha paralisantes.

Como o padre Ernani atuava também como psicanalista, há uma sobreposição de sequelas, que geram desconfiança, insegurança, desconhecimento sobre si mesmo, angústia e medo.

"Eu tenho medo de apanhar dele, eu tenho medo de ver ele, eu tenho medo de ver a cara dele. Eu não sei o que ele vai fazer comigo", conta Detânia Pereira, uma das ex-monjas que viveu no mosteiro por cerca de dez anos.

"O que as vítimas narram de forma sistemática e recorrente é uma prática de manipulação à base de confiança", afirma o psicanalista Christian Dunker, professor titular do Instituto de Psicologia da USP (Universidade de São Paulo), que teve acesso aos relatos recolhidos pela reportagem.

"Tem uma instrumentalização de um rito católico cristão, que é a confissão, para uma segunda versão disso, uma versão parasita, que seria a transferência em psicanálise, para, aparentemente, uma narrativa de cura",

"Demorei quatro anos para conseguir sair [do mosteiro]", conta a vítima 9, uma mulher de 38 anos que foi uma das primeiras a integrar a comunidade. Ela chegou em 2003, aos 17 anos.

"Ele manipulava a mente da gente. Distorcia os fatos. Criou na gente a veneração à imagem dele. Principalmente nos homens. Ele se colocava como se fosse o santo que nasceu neste século. A santidade encarnada", afirmou.

"A personalidade dele era muito agressiva, te abaixava, te humilhava, como se ele fosse o santo e você o pecador. Quando decidi sair, pensei: será que eu não reconheci o santo na terra? Eu sentia culpa."

Código de direito canônico - Arte/ UOL - Arte/ UOL
Imagem: Arte/ UOL

"Lavagem cerebral"

Para uma das fontes ligadas à Igreja Católica que conversaram com a reportagem sob anonimato, é como se os integrantes do mosteiro tivessem sofrido uma "lavagem cerebral", termo mencionado por muitos ex-monges e ex-monjas. Essa fonte descreve que essas pessoas pareciam "criancinhas assustadas".

Muitos contam que foi difícil a readaptação e que chegaram a questionar Deus, sentem pânico de entrar em uma igreja.

"Só agora, depois de dois anos, que eu estou conseguindo deixar um dinheiro na minha conta. Agora, com 30 anos. Na minha cabeça, eu entrei no mosteiro para morrer lá. Não tinha segunda opção. O que o Ernani mais fez foi descaracterizar todo mundo. Depois que todo mundo era uma tela em branco, ele podia fazer o que ele quisesse. Quando tudo estourou, ruiu tudo. Não tínhamos mais pilar nenhum. Se eu não me matei naquele momento, nada mais me derruba".

Dacau - José Dacau/UOL - José Dacau/UOL
Detalhe da antiga sede do mosteiro da Santíssima Trindade, em Monte Sião (MG)
Imagem: José Dacau/UOL

Relacionamento abusivo

Os responsáveis pela investigação por parte da igreja tomaram o depoimento de religiosos que acusam Ernani. Um deles, a vítima 7, relatou ter vivido um relacionamento abusivo de três anos com Ernani.

O ex-monge afirmou ao UOL ter sido procurado duas vezes pela Igreja para dar a sua versão sobre o que ocorria. Depois, não houve mais amparo. Ainda em 2018, ele disse que teve uma conversa particular com o próprio arcebispo Majella de mais de duas horas.

"Contei tudo o que passei nas mãos do Ernani. O arcebispo chegou a chorar, falou que o Ernani era um psicopata e disse que eu corri risco de morrer", afirma.

No ano seguinte, o arcebispo pediu para que ex-monge prestasse depoimento formal aos padres canonistas Jésus Andrade Guimarães e Vonilton Augusto Ferreira, um como notário, transcrevendo o depoimento, e o outro com o papel de perguntar.

Mas, segundo ele afirma, o comportamento do arcebispo, antes acolhedor e empático, foi mudando. Tornou-se distante. Em abril de 2019, o ex-monge relata que, diante da mudança de postura do arcebispo, decidiu procurar o núncio apostólico do Vaticano no Brasil — cargo comparado a um embaixador no país.

Na época, Dom Giovanni d'Aniello ocupava a função. No ano passado, foi transferido para a Rússia. O núncio propôs levar seu caso ao conhecimento do arcebispo de Pouso Alegre, Dom Majella, que já estava ciente do que tinha acontecido.

A vítima 7 acabou desistindo de prosseguir com a denúncia, por não acreditar que teria uma resposta da igreja. Um familiar dele chegou a mandar uma carta para a Santa Sé, endereçada ao papa Francisco, e nunca teve resposta.

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Mosteiro perdeu status e passou a ser comunidade de leigos consagrados, após saída de Ernani
Imagem: Reprodução

Reconstrução da comunidade

Com a saída definitiva do padre Ernani do Mosteiro Santíssima Trindade, os irmãos e as irmãs que permaneceram decidiram se reconstruir. Receberam apoio do arcebispo Dom Majella e outros religiosos para organizar novamente os papéis da comunidade, que estavam irregulares.

Perderam o status de mosteiro — que não poderia existir com homens e mulheres convivendo no mesmo ambiente — e passaram a se identificar como uma comunidade de leigos consagrada, a Comunidade Santíssima Trindade.

Deixaram de usar hábito, têm quartos individuais e mudaram de endereço.

Refundaram o grupo em outro local, que já estava em construção. A ajuda da Arquidiocese de Pouso Alegre na área contábil, psicológica, espiritual e canônica foi fundamental.

"Sem isso a gente não conseguiria. Ficamos totalmente perdidos quando tudo aconteceu", relata a irmã Denise Aparecida Alves, uma das 13 pessoas que decidiu permanecer na comunidade.

Não implementam mais o "Caminho de Emaús", criado por Ernani. Agora, a iniciação à vida de oração se chama "Arca da Esperança", desenvolvida com o apoio do teólogo Francisco Catão.

A mudança de local, em novembro de 2020, teve um significado de recomeço. Mas os traumas e os danos à imagem se mantiveram.

"Desde 2018 até agora foram momentos de sofrimento emocional e espiritual."

Foram muitas saídas. As pessoas se afastaram, diziam que não confiavam em nós, que não fomos honestos", afirma Denise. Só agora, quase três anos depois, é que a sociedade local começa a frequentar e a ver com bons olhos a nova comunidade.

"Muitos ligavam a gente à presença de Deus e deixaram de acreditar [em nós]. É um grande sofrimento para nós. Mas muitos sabem separar o fundador [padre Ernani] de nós", afirma Luciana Maria de Souza Reis. Ambas dizem que não querem apagar a história que viveram, apesar da decepção.

"Houve desvirtuamento, mas também teve muita coisa boa", afirma Denise. "A gente amadureceu demais", diz Luciana. A Comunidade Santíssima Trindade atua sem um líder único, com tomada de decisão coletiva.

Os ex-monges que foram vítimas de violações cometidas pelo padre Ernani e decidiram deixar o mosteiro antes da intervenção da Arquidiocese de Pouso Alegre, não receberam a mesma assistência, como relataram à reportagem. Eles dizem que fazem uso de remédios controlados e que estão em terapia.

Veja o segundo episódio do documentário "Nosso Pai":