Compra de fuzis que Flávio Bolsonaro facilitou tem indício de favorecimento
Uma compra de 500 fuzis pela Polícia Civil do Rio de Janeiro com recursos liberados pelo senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ) no Ministério da Justiça foi marcada por série de indícios de direcionamento e conflito de interesses envolvendo um dos policiais responsáveis pela parte técnica da licitação, aponta investigação conduzida pelo UOL.
A Sig Sauer, gigante da indústria bélica com sede nos EUA, venceu o pregão em julho com a oferta de R$ 3.810.442,05 (2% abaixo do teto estipulado), mas a compra só foi concretizada cinco meses depois, quando Flávio conseguiu a liberação de R$ 3 milhões com a Senasp (Secretaria Nacional de Segurança Pública), principal estrutura do Ministério da Justiça.
Fabricantes de armas viram restrições à concorrência no edital e também levantaram suspeitas de direcionamento. Especialistas ouvidos pelo UOL dizem que a licitação é "viciada" e deve ser anulada.
A Polícia Civil do Rio nega ter favorecido a Sig Sauer e alega que a licitação foi auditada por órgãos públicos. Procurado, o governador do Rio, Cláudio Castro (PL), não se manifestou sobre a intermediação para a liberação dos recursos.
Flávio Bolsonaro afirmou em nota que não tinha conhecimento de possíveis irregularidades na compra dos fuzis e defendeu que a licitação seja investigada. Ele ainda negou fazer lobby para a Sig Sauer, dizendo que "não atua a favor de empresas de nenhum segmento".
O Ministério da Justiça afirmou, em nota, que a verba foi destinada para a compra dos fuzis por meio de uma lei de 2019. Ainda segundo a pasta, a liberação deste recurso ocorreu após processo licitatório feito pelo Rio de Janeiro e analisado pelo ministério, "conforme normas que estabelecem transferências de recursos da União mediante convênios e contratos de repasse de forma pública".
Contratado da Sig Sauer atuou em edital
A Sig Sauer já recebeu uma série de manifestações de apoio da família Bolsonaro para seus negócios no Brasil. No mercado de materiais bélicos, é corrente o discurso de que o clã presidencial defende os interesses da empresa —são citados sempre os nomes de Flávio e Eduardo Bolsonaro.
O UOL apurou que um dos três policiais que elaboraram toda a parte técnica da licitação trabalha para a Sig Sauer. Ele é Manoel Hermida Lage, inspetor da Polícia Civil, que atua como instrutor do campo de tiros da fabricante no Brasil.
De acordo com dois representantes de fabricantes estrangeiras, a Sig Sauer usa seu campo de tiro como forma de recrutar policiais em posições estratégicas em vários estados para obter editais com especificações técnicas que a favoreçam.
As fontes relataram ao UOL que essa prática é adotada de maneira sistemática por Marcelo Costa, que está à frente da Sig Sauer no Brasil. Elas dizem ainda que Costa usa os nomes de Flávio e Eduardo Bolsonaro como forma de abrir portas em órgãos públicos. Flávio Bolsonaro afirmou ao UOL que não autoriza que ninguém fale em seu nome: "apenas ele, o próprio parlamentar, fala pelo seu mandato", sustenta em nota.
A Polícia Civil do Rio diz que Manoel Lage não possui "qualquer vínculo empregatício com a empresa citada". Para a corporação, a participação no campo de tiro da Sig Sauer "é considerada uma atividade de docência e autorizada para prática particular fora da atividade policial".
Mas registros publicados nas redes sociais do policial, da Sig Sauer Brasil e da empresa Performa Defesa —fundada por Marcelo Costa— mostram que Lage acompanha Costa em reuniões para apresentar as armas da Sig Sauer a outras corporações policiais no país, auxiliando nas vendas.
As publicações revelam que Lage participou de encontros com representantes da PM de Minas Gerais; das polícias Civil e Militar do Ceará; assim como da Polícia Civil e da Superintendência da Polícia Federal do Paraná. Neste último estado, ele foi ciceroneado pelo deputado estadual Tiago Amaral (PSB-PR) para uma reunião com representantes do governo paranaense.
Na visita a Minas Gerais, Lage aparece em uma foto ao lado de Costa —e foi justamente Costa quem representou a fabricante no pregão para a compra dos fuzis no Rio.
O UOL fez contato com Manoel Lage por meio de seu perfil no Instagram. O policial visualizou as mensagens, mas não respondeu. A reportagem pediu à assessoria de imprensa da Polícia Civil do Rio uma entrevista com ele, mas não houve retorno.
Influente, Costa circula com desenvoltura em Brasília e costuma se encontrar com autoridades. Entre elas, o deputado federal Eduardo Bolsonaro, filho 03 do presidente Jair Bolsonaro.
Foi o parlamentar quem defendeu que a Imbel (Indústria de Material Bélico do Brasil), estatal vinculada ao Exército, firmasse parceria para produzir em suas fábricas pistolas da Sig Sauer. Em suas redes sociais, Eduardo ironizou o fato de ser chamado de lobista da Sig Sauer e negou ser patrocinado pela empresa. O UOL procurou seu gabinete e assessores, mas não obteve retorno.
Por uma semana, a reportagem tentou contato com Marcelo Costa por ligações e mensagens de WhatsApp, mas ele não respondeu. Também enviou e-mail com perguntas à Performa Defesa, empresa mantida por ele.
Restrição da concorrência
Partiu dos documentos técnicos assinados por Lage uma série de detalhes que restringiram a concorrência, segundo especialistas ouvidos pelo UOL e documentos entregues por outras fabricantes à Polícia Civil do RJ.
O chamado Termo de Referência definiu que os fuzis deveriam ter canos de 14,5 polegadas (36,8 cm). O modelo mais comum é um pouco maior, de 16 polegadas (40,6 cm).
O documento assinado por Lage e outros dois policiais justifica a escolha por razões operacionais.
De acordo com o Termo de Referência, "o menor comprimento de cano [modelo de 14,5 polegadas] permite deslocamentos com agilidade e rapidez em situações de resgate de reféns, bem como transporte facilitado em viaturas e aeronaves policiais durante operações táticas e ações de alto risco".
No entanto, outras forças policiais de elite que atuam em situações de resgate de reféns compraram recentemente os mesmos fuzis da Sig Sauer, com cano de 16 polegadas. É o caso das unidades Swat (Armas e Táticas Especiais, em inglês) das polícias de Detroit e da Filadélfia, nos EUA.
Também causou estranheza no mercado a exigência de que a arma escolhida estivesse "em uso por forças de segurança ou militares internacionais há pelo menos 5 anos". Esse ponto fez com que três empresas tentassem impugnar o edital de licitação, mas a Polícia Civil o manteve sem mudanças.
A brasileira Taurus e as turcas Kalekalip e MKEK viram a exigência como uma forma de restringir a concorrência. A Taurus e a Kalekalip ainda questionaram diversas exigências técnicas do edital.
A Taurus observou que um dos requisitos cria uma exigência irrelevante "que direciona o edital para empresas que o possuem, sem qualquer justificativa" e adverte ser "vedada a escolha de marca ou especificações que limitem a competitividade".
Já a Kalekalip insinua o favorecimento à Sig Sauer na escolha do tipo de bloco de gases usado para disparar os projéteis "aparentemente direcionando o certame licitatório em tela para alguma determinada empresa".
Única concorrente foi eliminada
Além da Sig Sauer, três empresas chegaram a enviar propostas à Polícia Civil do Rio —a Taurus e as americanas Springfield Armory e Regulus.
Apenas a Springfield Armory de fato tentou participar do pregão, mas foi desclassificada por ter deixado de apresentar dois documentos. A empresa afirma que "bastaria uma simples diligência para a realização de saneamento das propostas para que a plena regularidade documental" fosse garantida.
A Polícia Civil diz que as alegações da Springfield foram "analisadas por diversos setores" e acabaram rejeitadas.
Luiz Horta, o Tatai, diretor internacional de vendas e marketing da Springfield, admite que a empresa falhou ao não enviar todos os documentos e critica a condução do pregão. "Não acho que teve favorecimento, zero. Foi falta de experiência do pregoeiro, porque poderia ter sanado isso em cinco minutos com todo mundo na linha."
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