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Por que a Universal teve de devolver doação de fiel que ganhou na loteria

Fiel disse ter se arrependido de doação por não ter recebido as "bençãos" prometidas - Divulgação
Fiel disse ter se arrependido de doação por não ter recebido as "bençãos" prometidas Imagem: Divulgação

Heloísa Barrense

Do UOL, em São Paulo

01/04/2022 04h00Atualizada em 01/04/2022 16h26

A Justiça condenou nesta semana a Igreja Universal do Reino de Deus a devolver mais de R$ 100 mil a uma fiel que se arrependeu de fazer uma doação para a instituição há cerca de sete anos. A mulher deu parte do prêmio que o então marido havia conquistado na Lotofácil, com a promessa de ter a "vida abençoada", o que ela alega não ter ocorrido. A sentença argumenta que anulação da doação se deu pelo fato de que a transferência de alto valor não foi formalizada. Mas o que isso significa?

O UOL conversou com especialistas em Direito Civil para entender a decisão. O juiz responsável pela ação na 1ª Vara Cível de Samambaia (DF) afirmou que "como se trata de oferta de alta monta, não há como dispensar o preenchimento do requisito legal". Além do valor de R$ 101 mil que a fiel havia doado, também estava um carro Hyundai - HB20, cuja devolução não foi concedida pelo magistrado.

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Para os advogados Thiago Gomes Pereira e Rafael Oliveira da Silva, sócios de escritório especializado em Direito Civil e Processo Civil em São Paulo, as ofertas de doações de grandes valores precisam ser formalizadas, independentemente de quem seja a pessoa ou instituição que irá recebê-la.

"A ideia da formalização é relacionada ao momento em que a pessoa está fazendo aquela oferta para identificar, por exemplo, se é um momento de fragilidade. Por isso, a lei pede para instrumentalizar, ou seja, formalizar a doação em um contrato particular ou por meio um instrumento público, como o cartório de notas", explica. "A instituição religiosa não está acima da Constituição. É por isso que ela precisa instrumentalizar."

Na situação vivida pela fiel, como o carro tinha uma documentação formalizando a transferência, o juiz não concedeu a devolução porque a doação tinha um documento com assinatura e testemunhas, o que provaria "expressamente" a declaração de vontade dela. "Como foi instrumentalizado e com a confirmação de duas testemunhas, é algo que fica muito difícil de invalidar no Judiciário", explica Thiago.

A advogada Rosana Chiavassa, que possui décadas de atuação na área, explica que mesmo o Brasil sendo um Estado laico, as instituições religiosas devem cumprir com as normativas. "Existe uma hierarquia de importância de regras. Tem o Código Civil, que rege os contratos. A lei exige que, para validar uma doação, tenha que ter uma intenção. Por isso tem que estar registrado", diz ela. "E, quando acionada, a Justiça pode intervir em relações privativas, como de um fiel com a sua igreja."

Os especialistas ainda afirmam que há uma diferença entre grandes doações e dízimo, que é pago geralmente em cultos e missas. Esta oferta possui um aspecto diferente, uma vez que está vinculado à manutenção da instituição que o próprio fiel frequenta.

"O dízimo é para a estrutura, o pagamento dos funcionários de uma igreja. O fiel está dentro da organização social de forma jurídica", diz Rafael. Geralmente, as ofertas do dízimo não são de altos valores e tem aspecto religioso, além de não ser uma obrigação para os frequentadores. "O caso do Distrito Federal foi de uma oferta de um valor vultoso, então deveria ter uma formalização", completa o advogado.

E quando formalizar uma doação?

contrato - Shutterstock - Shutterstock
Formalização de doação deve ocorrer apenas em situações de ofertas de grandes quantias
Imagem: Shutterstock

Não há um consenso específico do ponto de vista jurídico sobre o que seria uma doação de grandes proporções. Thiago e Rafael acreditam que o valor depende da capacidade financeira de quem está ofertando a doação. Já para Rosana, uma média do que indicaria a necessidade da formalização da oferta é de dez salários mínimos, algo equivalente a R$ 12 mil atualmente.

"Com a minha experiência, acredito que o valor seria de dez salários mínimos. Isso é muito dinheiro. Abaixo disso, é possível até abrir discussões", diz. Ela ainda alerta que, se uma pessoa quiser fazer ofertas de grandes proporções, pense bem antes de assinar qualquer contrato. "Uma vez assinado, está legalmente formalizado."

O caso

A fiel frequentava a Universal com o marido desde 2006, "a fim de alcançar o sucesso financeiro, profissional e familiar", segundo consta no documento judicial. Durante os cultos, foi informada por pastor que os fiéis deveriam contribuir com 10% de todo valor que recebessem para alcançar as "graças divinas". Ela afirmou que, motivada pela fé, passou a descontar o dízimo mensalmente do salário do marido, que na época trabalhava como gari.

Em setembro de 2014, o marido foi contemplado com um prêmio da Lotofácil de R$ 1,8 milhão. O casal então decidiu transferir 10% do valor (correspondente a R$ 182.102,17) para a Igreja, conforme foram instruídos. Além disso, o marido ainda transferiu um valor de R$ 200 mil com a "promessa de que sua vida seria abençoada". Apesar das doações, o casal não assinou nenhum documento formalizando a transferência de grandes quantias.

Os dois se separaram em outubro de 2015 e, "na busca das bênçãos financeiras", a mulher fez mais uma doação em dezembro daquele ano de um carro Hyundai - HB20 e de mais R$ 101 mil. Nos anos seguintes, no entanto, a mulher deixou de frequentar os cultos por não ter alcançado "o ápice prometido nas pregações" e decidiu entrar com a ação em junho do ano passado, pedindo a restituição do valor e do veículo doados por ela.

Além dela, o ex-marido também entrou com ação contra a Universal, em 2020, pedindo a restituição do montante de R$ 382.102,17, que foi doado em nome dele. O pedido de nulidade da doação foi concedido pela Justiça, com incidência de correção monetária, assim como o da ex-mulher.

Na decisão, a juíza da Vara Cível do Riacho Fundo entendeu que o "pedido de nulidade sustentado pelo autor tem seu fundamento no fato de não ter sido observada solenidade que a lei considere essencial para a validade do ato, qual seja, formalização do negócio jurídico por escritura pública ou instrumento particular."

"Em síntese, a formalidade é exigida não apenas para dar certeza de que aquele negócio é ato de mera liberalidade, mas também para resguardar a pessoa do doador, funcionando como um mecanismo para posterior controle sobre o que foi doado, sobre a intenção do doador e a sua capacidade no momento do ato, dentre outros", diz sentença, publicada em abril do ano passado.

O que diz a Universal

A Igreja Universal do Reino de Deus defendeu que a sentença "não questiona a doação efetuada à Igreja Universal do Reino de Deus, ou a motivação da doadora, nem aponta qualquer tipo de coação."

"A decisão judicial apenas estipula que, na visão do magistrado, em razão do valor envolvido, a doação deveria ter sido efetivada por intermédio de um instrumento público. Reiteramos que Universal faz seus pedidos de oferta de acordo com a lei, exercendo seu direito de culto e liturgia, assegurados pela Constituição Federal", informou a instituição em nota enviada ao UOL.

"Em um país laico, como o Brasil, não é possível qualquer tipo de intervenção do Estado — incluindo o Poder Judiciário — na relação de um fiel com sua Igreja. A Universal recorrerá da decisão, com a certeza de que a Justiça será restabelecida", finaliza comunicado.