Polícia investiga se houve abandono de incapaz de mulher da casa abandonada
A Polícia Civil de São Paulo investiga se houve abandono de incapaz da "mulher da casa abandonada", tema de podcast produzido pelo jornalista Chico Felitti para a Folha de S. Paulo, que conta a história de Margarida Bonetti. Ela foi acusada, nos Estados Unidos, de ter mantido uma funcionária em condições análogas à escravidão entre o fim da década de 1970 e o começo dos anos 2000.
A Polícia Civil de São Paulo informou ao UOL que o filho e a irmã dela serão intimados hoje para prestar depoimento em inquérito que apura se a mulher sofre de algum distúrbio psiquiátrico. A reportagem ouviu profissionais da área de saúde, que veem traços de transtornos mentais nas ações relatadas sobre Margarida.
Há duas décadas Margarida mora em uma mansão em Higienópolis, bairro nobre da capital paulista. Hoje, o imóvel está coberto por "vasta vegetação" e sem saneamento básico, segundo o boletim de ocorrência registrado nesta semana.
Ela foi para a residência após deixar os Estados Unidos em meio à investigação que apurou o crime de manter a empregada em condição análoga à escravidão — na mesma época em que seu pai morreu. Condenado em 2001 a seis anos e meio de prisão, o engenheiro brasileiro Renê Bonetti, marido de Margarida, cumpriu pena pelo crime nos Estados Unidos.
A Polícia Civil de São Paulo informou ter aberto investigação nesta semana após receber ligações da vizinhança com relatos de que residia no imóvel "uma pessoa que apresenta problemas de saúde mental, e que estaria necessitando de ajuda", informou o boletim de ocorrência. Margarida, seu filho e sua irmã não foram localizados para que pudessem se posicionar sobre o caso.
A residência está em estado de abandono, com vasta vegetação cobrindo a entrada do imóvel, que estava fechado. Porém, foi possível perceber que havia uma luz acesa. No entanto, ninguém atendeu a investigação."
Trecho da ocorrência da Polícia Civil
"A residência estaria sendo ocupada por uma moradora, que apresenta problemas mentais e supostamente recebe visita de uma irmã, que por sua vez costuma deixar alimentos para ela", complementa o boletim de ocorrência ao qual o UOL teve acesso.
No último domingo (3), integrantes do Instituto Luisa Mell, encarregado pela proteção de animais, pularam o muro do imóvel para resgatar dois cães na residência em ação acompanhada pela própria Polícia Civil.
"A casa não está somente insalubre como com um cheiro terrível. E a dona foi embora!", diz publicação do instituto no Instagram.
Mau cheiro e cães resgatados na mansão
A reportagem esteve na frente da mansão, onde verificou grande presença de curiosos, que sacaram os seus celulares para registrar detalhes do imóvel e conversaram com a vizinhança em busca de detalhes da história.
Em entrevista ao UOL, o delegado Roberto Monteiro, da Seccional do Centro de São Paulo, relacionou a investigação às denúncias levadas à Polícia Civil pela própria vizinhança.
"Nós recebemos denúncias de vizinhos, que reclamaram do mau cheiro e da presença de dois cães em sofrimento. Inclusive, há relatos de que a pessoa que morava ali jogava excrementos humanos pela janela", disse.
Com base nos relatos dos moradores do entorno, Monteiro vê indícios de possível transtorno mental.
Ela [Margarita Bonetti] vive em uma casa sem água, sem esgoto e em situação precária, em uma casa abandonada. Se está lá dentro nessas circunstâncias, supostamente houve abandono por parte da família. É importante que se apure se houve abandono de incapaz. Vamos ouvir membros da família para obtermos informações desse caso tão misterioso."
Roberto Monteiro, delegado
A Polícia Civil fez levantamento junto à Justiça norte-americana para verificar se há mandado de prisão em aberto contra ela. Mas nada foi encontrado, de acordo com o delegado. "Ela foi acusada com o marido, que foi preso por colocar a empregada doméstica em situação análoga à escravidão. Mas não há mandado de prisão pendente contra ela por lá", afirmou Monteiro.
O delegado confirmou a história contada pelo podcast "A Mulher da Casa Abandonada", citando o contato restrito com os vizinhos e reclamações relacionadas ao corte de árvores na rua. "Ela tinha pouco contato com a vizinhança. Quando tinha, inventava uma história complexa sobre um suposto complô para cortar as árvores."
'Indícios de processo delirante'
A reportagem conversou com profissionais da área da saúde que ressaltam que não tiveram contato com Margarida —por isso, fizeram apenas uma análise com base em relatos que ouviram.
O psicanalista Christian Dunker vê sinais de transtornos mentais em ações atribuídas a Margarida Bonetti. "Há indícios de um processo delirante. Isso pode acontecer em vários transtornos mentais", avalia.
No caso de Margarida, Dunker cita o isolamento dela na mansão como uma forma de "proteção" em meio a um delírio, onde ela pensa estar sendo vítima de perseguição.
A casa vira uma espécie de bunker [como são chamadas estruturas no subsolo de imóveis para resistir a projéteis de guerra] para uma pessoa que pensa que tem sempre algo ou alguém querendo prejudicá-la. Quem entra, vai trazer veneno ou vai mexer naquela ordem delirante que está ali."
Chrtistian Dunker, psicanalista
"Ela é uma pessoa inacessível. Qualquer um que se aproximar, seja um médico, um psicólogo ou o próprio familiar, vai assumir o lugar do 'perseguidor'", complementa.
O psicanalista acredita na possibilidade de que Margarida não sabia que estava cometendo um crime nos Estados Unidos, em episódios que envolviam puxões de cabelo e até uma sopa quente jogada contra o rosto da vítima.
A psicóloga Julia Bongiovanni, que atua na área de saúde mental e acompanha o podcast "A Mulher da Casa Abandonada", concorda.
"Não parece ser só a perversão de uma infratora da lei. Parece ser o caso de uma pessoa que não consegue responder pelos próprios atos. Pelo que consta nos episódios, há indícios de que ela [Margarida] estaria em sofrimento psíquico e de que precisa de cuidados de saúde mental, principalmente pela situação de insalubridade onde ela vive."
Dunker entende, ainda, que a narrativa dela de que havia um esquema de corrupção envolvendo o corte de árvores deu continuidade ao "delírio". "Provavelmente, os funcionários da Prefeitura de São Paulo entraram no lugar do 'perseguidor'. Ela vê no outro um potencial perseguidor, e está lutando contra esse inimigo imaginário."
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