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'Achei que tinha que viver isso por ser pobre', diz homem reescravizado

Marinaldo foi resgatado de trabalho análogo à escravidão três vezes. Hoje, trabalha como vigia - Arquivo pessoal
Marinaldo foi resgatado de trabalho análogo à escravidão três vezes. Hoje, trabalha como vigia Imagem: Arquivo pessoal

Fabíola Perez

Do UOL, em São Paulo

18/03/2023 04h00

O maranhense Marinaldo Soares Santos, 51, começou a trabalhar na roça com 10 anos. Desde então, dormiu em tecidos de lona, bebeu água destinada a animais —com restos de fezes—, e sofreu ameaças de empregadores.

Mesmo tendo sido resgatado três vezes por operações do MTE (Ministério do Trabalho e Emprego) e do MPT (Ministério Público do Trabalho), não imaginava que o seu trabalho se configurava como análogo à escravidão. "Achava que era normal, que estava passando por aquilo porque eu era pobre", disse ao UOL.

Dados do Observatório Digital do Trabalho Escravo no Brasil, mantido pela OIT (Organização Internacional do Trabalho), pelo MPT e o MTE, mostram que:

  • 1,73% dos 35.341 trabalhadores resgatados de condições análogas à escravidão entre 2003 e 2017 são reincidentes;
  • Isso significa dizer que 613 trabalhadores foram resgatados ao menos duas vezes nos últimos 15 anos;
  • Em 2022, 30 trabalhadores foram resgatados de condições degradantes mais de uma vez.

A principal reclamação é a falta de oportunidade e perspectiva. Se as denúncias forem exclusivamente sobre condições degradantes, o trabalhador volta. Eles trazem a ideia de 'precisão' [necessidade] para sustentar familiares ou sobreviver. A reincidência é uma falha do Estado".
Maurício Krepsky, chefe da Divisão de Fiscalização para Erradicação do Trabalho Escravo do MTE

A pandemia agravou o cenário de trabalhadores que voltam às condições degradantes do trabalho análogo à escravidão. "Nos três últimos anos, notamos que houve um aumento da mão de obra precarizada e degradante", afirma Guillermo Rojas, defensor público federal e coordenador do Grupo de Trabalho de Assistência às Trabalhadoras e Trabalhadores Resgatados em Situação de Escravidão.

A ausência de políticas públicas para inserir trabalhadores no mercado formal de trabalho é outro entrave. "O trabalhador recebe três parcelas de seguro-desemprego, o que é muito pouco. Ele deveria passar por cursos e por algum tipo de reabilitação para entrar no mercado com mais qualidade."

Não achava que era 'trabalho escravo'

Marinaldo deixou a casa dos pais na cidade de Monção, interior do Maranhão, ainda adolescente. "Todo fim de semana a gente ia fazer compras na cidade de Pindaré-Mirim e tinha um carro dizendo que ia levar trabalhadores para o sul do Pará. Uns 80 homens foram levados para uma fazenda em Parauapebas. Meu primo me disse 'compadre, vamos trabalhar?", lembra. O ano era 1988.

Marinaldo mostra água suja em uma das fazendas em que ele trabalhou  - Divulgação/Ministério do Trabalho e do Emprego - Divulgação/Ministério do Trabalho e do Emprego
Marinaldo mostra água suja em uma das fazendas em que ele trabalhou
Imagem: Divulgação/Ministério do Trabalho e do Emprego

Após passar o dia viajando, Marinaldo diz que chegou em uma fazenda com frio e fome. "A dormida era num barraco de lona, fazia muito frio. Passava a noite mais acordado do que dormindo no meio da mata."

Na fazenda, ele trabalhava "roçando" o pasto, cortando a mata e retirando estacas para construir cercas. "No dia que a gente se sentia mal tinha que trabalhar de qualquer jeito."

Foi resgatado pela primeira vez em 2007 pelo Grupo Especial de Fiscalização Móvel em uma fazenda em Santa Luzia do Tide, no Maranhão. Voltou ao trabalho degradante pouco tempo depois, quando a mulher estava grávida do segundo filho —e ele precisava sustentar a família.

 A rota de Marinaldo por trabalho - Arte/UOL - Arte/UOL
Imagem: Arte/UOL

Passei a maior parte da minha vida assim. Eu não conhecia meus direitos, só depois comecei a ver o quanto estava sendo escravizado."
Marinaldo Soares Santos, trabalhador resgatado três vezes

A segunda oferta de trabalho análogo à escravidão veio, em 2009, por meio um conhecido dizendo que "todo final de mês ele poderia voltar para casa". O trabalho era em uma fazenda em Marabá, interior do Pará.

Com uma promessa dessas, a gente até se esquece do que já passou. A gente vai tentando acertar. Voltei pela precisão, minha família precisava de mim. Por eu não ter estudo, os trabalhos que me ofereciam eram só em fazenda."
Marinaldo Soares Santos, trabalhador resgatado três vezes

Rapidamente, as promessas caíram por terra: as refeições não eram por conta da fazenda, não era permitido sair do local de trabalho e o pagamento não chegava aos trabalhadores. "Disseram que se a gente tentasse escapar, não sairia de lá vivo."

Nesse intervalo, ele procurou uma ONG que atua no apoio ao resgate dos trabalhadores escravizados. "Pagaram pelos danos morais, mas o dinheiro acabou."

Na terceira vez em que foi resgatado, em 2010, no Maranhão, Marinaldo diz ter vivido uma das passagens mais degradantes. Quando chovia, segundo ele, as fezes dos animais se misturavam com a água oferecida aos trabalhadores. "A gente usava nossa camisa para coar."

Acolhimento aos escravizados

Os resgates aos trabalhadores escravizados ocorrem com a presença de auditores do trabalho do MTE, integrantes do MPT, defensores públicos e o apoio de entidades do terceiro setor —como o Centro de Defesa da Vida e dos Direitos Humanos Carmen Bascarán, de Açailândia (MA).

Muitas vezes, eles chegam desnutridos, damos um banho, ouvimos as histórias. Ser vítima do trabalho escravo é consequência de várias violações de direitos. Não é só a parte trabalhista."
Mariana De La Fuente, integrante da ONG

À entidade, os resgatados relatam falta de pagamento e descrevem as condições insalubres às quais foram submetidos. Mas, segundo Mariana, muitos não se reconhecem como vítimas de trabalho análogo à escravidão. "O desconhecimento dos direitos e falta de oportunidades os fazem voltar."

Alojamento onde trabalhadores foram resgatados da escravidão em Aimorés (MG) - Inspeção do Trabalho - Inspeção do Trabalho
Alojamento onde trabalhadores foram resgatados da escravidão em Aimorés (MG)
Imagem: Inspeção do Trabalho

Entre os reincidentes, homens solteiros, sem familiares e sem escolaridade compõem o perfil mais comum. "São pessoas que não frequentaram escolas e trabalham desde cedo no campo. Começam a passar por fazendas e acreditam que as violações são normais."

Ao serem resgatados, os trabalhadores recebem 13º salário, férias proporcionais, aviso-prévio, seguro-desemprego, danos morais individuais e saldo de salário pendente —mesmo sem acordo na Justiça com a empresa. "O valor é destinado ao pagamento de remédios, aluguel e alimentação e logo acaba", diz Mariana.

O defensor federal Rojas defende uma política de acolhimento que inclua a educação sobre direitos. "O trabalhador submetido a condições degradantes poderia ter um tempo especial de aposentadoria. O estado falha em visualizar essas condições e não oferecer políticas públicas de reinserção, acolhimento e construção de vínculos."

Após o terceiro resgate, Marinaldo já trabalhou como pedreiro, agricultor e pescador. Hoje, é vigia em uma escola de Monção e mora com a mulher, a filha e dois filhos. "Converso com trabalhadores e oriento eles procurarem ajuda. Hoje eu vivo para a minha família. Todo dia estou em casa. Penso em todo o sofrimento que passei e espero não precisar mais voltar."