Topo

Da advertência à aposentadoria: lei da ditadura rege punição a juízes

A lei que rege a magistratura é de 1979, ano em que o país estava sob uma ditadura - iStock
A lei que rege a magistratura é de 1979, ano em que o país estava sob uma ditadura Imagem: iStock

Do UOL, em São Paulo

01/04/2023 04h00

Processos contra magistrados nas corregedorias estaduais ou no CNJ (Conselho Nacional de Justiça) podem levar anos para ser concluídos, com punições que vão de uma advertência à aposentadoria compulsória.

A lei que rege a magistratura é de 1979, ano em que o país estava sob uma ditadura, e prevê as seguintes penas disciplinares, conforme a gravidade do ato:

advertência: casos em que o magistrado é negligente no cumprimento dos deveres do cargo.

censura: reincidência da negligência e nos casos de procedimento incorreto.

remoção compulsória: transferência para atuar em outro local.

disponibilidade: o magistrado pode ficar até dois anos afastado das funções e continua recebendo salário proporcional ao tempo de serviço.

aposentadoria compulsória: é a mais grave das penas aplicáveis a juízes vitalícios. Desídia (falta de zelo) com deveres do cargo, conduta imprópria ao decoro da função (na vida pública ou privada) e trabalho insuficiente sujeitam o juiz a essa pena. Ele recebe vencimentos proporcionais ao seu tempo de serviço.

demissão: após dois anos no cargo, o juiz adquire vitaliciedade e só pode ser demitido por sentença judicial transitada em julgado, quando não há mais possibilidade de recurso. Antes de ser vitalício, o juiz também pode ser demitido administrativo, sem passar por um processo judicial.

Aposentadoria compulsória é a pena mais comum

De 2006 até o ano passado, o CNJ registrou 140 punições a juízes e desembargadores. A maioria delas (75) foi de aposentadoria compulsória, a mais grave das cinco penas disciplinares aplicáveis a juízes vitalícios.

A segunda pena mais comum foi a censura (22), seguida pela disponibilidade (21), advertência (9) e remoção compulsória (7).

As penalidades não se aplicam a ministros do STF, que só podem perder o cargo em um processo de impeachment no Senado. Magistrados da Justiça Federal, do Trabalho, Eleitoral, Militar e dos estados estão sujeitas a elas.

Dificuldade na punição

Eliana Calmon é ex-ministra do STJ (1999 - 2013) - Elza Fiúza/Agência Brasil - Elza Fiúza/Agência Brasil
Eliana Calmon é ex-ministra do STJ e foi corregedora do CNJ
Imagem: Elza Fiúza/Agência Brasil

Os tribunais nos quais os magistrados estão vinculados têm suas corregedorias que podem realizar as fiscalizações disciplinares. Nesse caso eles são julgados por seus pares — e é justamente aí que ocorre o problema, segundo Eliana Calmon, ex-ministra do STJ que atuou como corregedora do CNJ.

O [ex-ministro do STF] Aliomar Baleeiro disse com muita propriedade: lobo não come lobo. O próprio tribunal que julga seus pares. É muito difícil você punir colega com quem trabalha há muitos anos. Os próprios colegas fazem lobby. Estive 40 anos no judiciário, eu sei como as coisas funcionam." Eliana Calmon

O CNJ foi criado em 2004 e, entre outras funções, também pode julgar processos disciplinares. "Consegui desentulhar processos ou eles (corregedores estaduais) corriam para julgar quando eu falava em avocar (chamar para si) o processo", contou a ex-ministra.

Qualquer pessoa pode fazer uma denúncia, mas nem todas se transformam em PADs (processos administrativos disciplinares). São necessárias algumas etapas antes, para verificar o fato e garantir o direito de defesa do magistrado.

Caso não concorde com a pena aplicada, o magistrado pode recorrer da decisão, e o caso pode parar no STF. "Tudo isso leva tempo e em 5 anos ocorre a prescrição", explica Calmon.

Uso de Porsche do réu e assédio causaram aposentadoria

24.fev.2015 - O juiz Flávio Roberto de Souza foi visto dirigindo o Porsche apreendido do empresário Eike Batista. Em entrevista à "Folha", o juiz confirmou que estava com o Porsche de Eike Batista e disse ter guardado o veículo na garagem do prédio onde mora, na Barra da Tijuca, para ficar seguro e protegido de sol e chuva. A corregedoria do Tribunal Regional Federal da Segunda Região, no Rio de Janeiro, abriu um processo para investigar a conduta do juiz - Rafael Moraes/Ag. O Globo - Rafael Moraes/Ag. O Globo
24.fev.2015 - O juiz Flávio Roberto de Souza foi visto dirigindo o Porsche apreendido do empresário Eike Batista
Imagem: Rafael Moraes/Ag. O Globo

Mesmo quando a acusação é de desvio de conduta grave no âmbito administrativo, o caso nem sempre vai à Justiça. Para que isso aconteça, é necessária denúncia do Ministério Público. "Isso é dificílimo, quase não existe", diz Calmon.

Foi o caso do juiz Flávio Roberto de Souza, conhecido após ter sido flagrado dirigindo um Porsche do empresário Eike Batista em 2015. Ele foi aposentado compulsoriamente naquele ano e perdeu o cargo em 2017.

O ex-juiz foi preso em março, após condenação em segunda instância por fraude processual e peculato. Na época, Souza alegou que levou o carro para sua casa para deixá-lo protegido.

Um juiz do Tribunal de Justiça de Goiás cujo nome não foi divulgado foi aposentado compulsoriamente pelo CNJ no ano passado por assédio sexual.

A corregedoria do CNJ abriu na terça-feira (28) uma reclamação disciplinar, em segredo de justiça, contra o juiz Valmir Maurici Júnior, da 5ª Vara Cível de Guarulhos (SP), acusado pela esposa de agressões. Ela entregou vídeos que mostram as violências sofridas.

A reclamação investigará se "os fatos narrados no inquérito, caso confirmados como condutas criminosas, configuram também a prática de graves infrações disciplinares".

O Ministério Público também investiga o caso. A defesa dele nega os fatos e repudia o "vazamentos ilegais de processos que correm em segredo de justiça".

O que dizem os magistrados sobre as punições?

Em nota, a AMB (Associação dos Magistrados Brasileiros), disse que "como qualquer cidadão, o juiz pode ser condenado criminalmente se a conduta envolver algum delito, desde que comprovada a culpa, respeitado o devido processo legal e o direito de defesa".

A AMB ressalta que o magistrado também está submetido judicialmente à penalidade civil, que consiste na reparação de eventual dano e na perda da aposentadoria e de contribuições, "situação mais gravosa do que a do contribuinte em geral".

A associação diz ainda que a Lei Orgânica da Magistratura pode ser modificada no Congresso por meio de projeto de lei de iniciativa do STF. O Supremo foi procurado pela reportagem, mas não retornou.