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'Fui alvo de inquérito da Polícia Federal por alterar verbete na Wikipedia'

Chico Venâncio começou a editar verbetes no Wikipedia há 17 anos - Arquivo Pessoal
Chico Venâncio começou a editar verbetes no Wikipedia há 17 anos Imagem: Arquivo Pessoal

Camila Corsini

Do UOL, em São Paulo

02/04/2023 04h00

Chico Venâncio tomou um susto ao receber, em meados de outubro de 2012, uma ligação: era a Polícia Federal, informando-o sobre a abertura de um inquérito contra ele. O autor? O ministro do STF Gilmar Mendes. O motivo? A alteração de um verbete na Wikipedia.

O programador de sistemas, que hoje tem 33 anos, edita a enciclopédia desde 2006. Na época, ele tinha acabado de voltar para a casa dos pais, em São Luís, depois de morar anos em Brasília para cursar a faculdade de relações internacionais.

Ao UOL, ele contou como o episódio inusitado aconteceu.

"Comecei a editar verbetes na Wikipedia em 2006, estudando para o vestibular. Eu lia bastante na época, principalmente as páginas em inglês. Aos poucos, fui encontrando algumas informações faltantes e comecei a editar.

Percebi que criar ou editar esses artigos faziam eu estudar muito, porque o processo exige discussão e te força a aprender aquele conteúdo de uma maneira mais concreta.

Depois que passei na universidade [relações internacionais, na UnB), editei muito menos — porque tinha menos tempo e não tinha mais a pressão de passar na faculdade.

Tem um rigor bem alto na Wikipedia, ainda mais quando pensamos em artigos de bastante popularidade. Quando mais pessoas se interessam por editar, isso traz um processo mais rigoroso de citar fontes. Se não tiver [provas do que se está escrevendo], alguém vai retirar. Essas edições claramente destrutivas são bem comuns, na verdade.

Eu fiz várias alterações no verbete do ministro Gilmar Mendes — a maioria para tirar vandalismos — no final de 2011 e início de 2012. Lembro uma vez em que colocaram que a religião dele era 'anticristo'. Em menos de dois minutos, eu tirei e bloqueei o usuário porque claramente era um vandalismo.

Agora, qual edição que eu fiz que ele se incomodou... É complicado saber. Na queixa-crime, as edições indicadas não foram feitas por mim. Lembro que o artigo estava muito elogioso ao ministro, e isso não faz parte das regras da Wikipedia. As orientações são citar e descrever com o mínimo de adjetivos, do ponto de vista mais neutro possível e com fontes.

E teve um editor, que não sei quem é, porque ele usava um pseudônimo, que reclamou. Ele queria manter os elogios, mas a comunidade, como um todo, discordou dele. Na época, o ministro chegou a enviar ofícios para a Wikimedia (empresa que administra a Wikipedia) de forma bem incisiva.

'Para meus pais, eu ia ser preso'

Um dia, já estava morando com meus pais de novo, o telefone tocou. Era um homem se identificando como da Polícia Federal. Na hora, pedi o número dele e entrei no Google para me certificar de que aquele era o número da PF em Brasília. Depois, liguei de volta e ele me informou do que se tratava. De fato, era uma situação bem inusitada.

Eu tinha acabado de voltar para São Luís, depois de morar em Brasília para fazer faculdade, e a Polícia Federal estava abrindo um inquérito contra mim por injúria e calúnia, por editar um artigo do ministro.

Eu e meu pai procuramos advogados em São Luís e em Brasília, que tivesse algum tipo de reconhecimento. A maioria se recusou a nos receber. Os poucos que nos receberam colocaram o valor dos honorários bem altos. Só falavam: não vou tratar disso e ponto.

Eu fiquei muito apreensivo, porque não sabia quais poderiam ser as consequências, e com raiva da situação. Só pensava: como assim eu estou sujeito a isso por editar um verbete? De um lado estava eu, do outro um ministro do STF e uma delegada que não sabíamos das reais intenções. Ficou uma situação bem perigosa.

Umas duas semanas depois, quando conseguimos um advogado e acesso ao inquérito, tivemos um certo alívio. A notícia-crime fazia referências a textos que eu não escrevi, e isso tornava as chances de aquilo ir para frente bem menores do que se fosse algo que eu tivesse realmente feito.

Meus pais também ficaram muito apreensivos. Por mais que eu tentasse explicar, e os advogados também, para eles o mundo estava acabando e eu ia ser preso. Foi uma reação de bastante preocupação.

Relatório indicou que não tinha crime

Todo o processo durou uns seis meses e a oitiva foi mais tranquila do que eu esperava, para ser sincero. O processo correu em Brasília mesmo eu não morando mais lá. Como eu tinha que ir até a cidade resolver algumas coisas, nos pareceu mais razoável. Eu até tinha a opção de solicitar que o inquérito fosse movido para São Luís, mas não quisemos.

Só depois ficamos sabendo: a primeira delegada que recebeu a queixa-crime se recusou a abrir o inquérito. E aí ele foi para a ouvidoria, que o encaminhou com a ordem de que fosse aberto.

A nova delegada tinha uma opinião que indicava que ela nem queria que aquele inquérito fosse aberto também. Ela queria saber quem escreveu os verbetes, não tinha sido eu. E ela compreendeu questões de como que a Wikipedia funcionava, que aquela edição era um processo normal e que eu tinha atuado contra vandalismos dentro do artigo.

Foram alguns meses de agonia, mas o relatório da delegada indicou que não havia crime. E que, se houvesse, não tinha sido eu que tinha cometido. O relatório dela foi muito favorável. Isso ficou mais umas duas semanas com o Ministério Público, até que eles fizeram um relatório também e a juíza optou pelo arquivamento.

Eu edito a Wikipedia até hoje, mas a minha participação mudou um pouco. Estou mais na área técnica, na formação e manutenção de ferramentas, porque fui para a área de tecnologia — que tem menos voluntários e consigo ter um impacto maior. Mas o verbete do Gilmar Mendes eu não editei mais. Acho que [o que aconteceu] teve um impacto razoável não só em mim, mas em outros editores também."

Procurado pela reportagem, por meio de seu gabinete, o ministro do STF Gilmar Mendes não respondeu sobre o caso.