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'Expulsa e isolada, há anos sem abraço': como é ser ex-testemunha de Jeová

Rejeitada pela família, ex-testemunha de Jeová teve depressão: "Castigo" - Freepik
Rejeitada pela família, ex-testemunha de Jeová teve depressão: 'Castigo' Imagem: Freepik

Camila Corsini

Do UOL, em São Paulo

26/04/2023 04h00

Marta* (nome fictício), de 34 anos, nasceu testemunha de Jeová no Rio de Janeiro. Cresceu nesse meio, entre amigos e familiares, e aos 19 anos foi batizada. Anos mais tarde, depois de uma atitude considerada "mundana", ela foi convidada a sair da religião.

Oficialmente, esse ato é chamado de desassociação.

Em uma rede social, ela conta que não recebe um abraço dos pais há mais de 10 anos. Sozinha, sem poder contar com as pessoas da igreja e sem amigos fora dela, ela foi diagnosticada com depressão. Hoje, ela decidiu não tentar voltar para a religião Testemunhas de Jeová. Ao UOL, ela conta sobre todo esse processo.

Religião da família

"Eu era testemunha de Jeová desde pequena, veio de família. Meus pais e toda a minha família do lado materno são TJ. Eu frequentava reuniões, fiz um progresso lá dentro. Quando estava saindo da adolescência, mais ou menos com uns 19 anos, fui batizada.

As testemunhas de Jeová se referem às pessoas que não são TJ como mundanas. E a recomendação é: uma vez que você está lá dentro, recebendo os ensinamentos, não deve manter amizades com quem não está ali também.

Essas pessoas podem vir a colocar alguma ideia na sua cabeça, coisas que vão contra os conceitos apresentados nas reuniões e que podem encaminhar você para o lado errado.

São coisas como drogas, violências, sexo antes do casamento ou colocar a carreira na frente dos interesses bíblicos.

Amizades com pessoas de fora do círculo podem implicar na pessoa se tornar mundana e sair desse meio, virar as costas do chamado 'caminho correto' e ir para o mundo.

Eu não posso falar o motivo que causou minha desassociação, porque ainda moro com os meus pais. Mas foi um motivo que, de acordo com as normas bíblicas dos TJ, eu sabia desde antes de me batizar que isso poderia me levar a desassociação.

Foi um processo bem doloroso, porque eu fiz sabendo que ia contra as normas - e não imaginei que alguém ia ficar sabendo, que iria acarretar tudo isso. Eu simplesmente fiz. A questão toda foi quando foi descoberto.

A desassociação é diferente do desligamento. Existem pessoas que são desligadas pela própria vontade: conversa com os anciãos (líderes) e explica que não querem mais estar ali - qualquer que seja o motivo. No meu caso, eu fui desligada.

'Contato não existe'

Para os meus pais, foi algo muito tenso. Eles não aceitaram muito bem a questão, mas foram eles mesmos que descobriram e levaram o caso para ser discutido. Quando veio a certeza da desassociação, não tenho nem como definir: foi muito tenso e doloroso.

Eles tinham toda uma ideia de que ia continuar mais uma geração da família seguindo os princípios da religião e não foi isso que aconteceu.

Na época que o meu 'erro' foi descoberto, meu pai era ancião. Foi muito falado e comentado - questionaram se ele não cuidava bem da família.

Até hoje, não tenho contato com meus tios e primos. Sei de algumas coisas que acontecem porque, como ainda moro com eles, às vezes minha mãe comenta. Mas saber da vida deles, eu não sei. Tenho até uma prima criança, não sei exatamente a idade dela, e eu nem a conheço pessoalmente.

Eles cortam contato com qualquer pessoa, mesmo familiar, que seja desassociado. E é o fato de ser desassociado, não de ser mundano.

Tenho alguns poucos primos que não seguiram na religião, não foram batizados, e eles são considerados membros da família, frequentam casamentos e festas. No meu caso, esse contato não existe.

Até por ser um círculo muito fechado, onde não é recomendável ter amizades fora da religião, você fica muito restrito naqueles amigos. Quando a desassociação ocorreu, foi devastador. Eu passava pelas minhas amigas do bairro e elas simplesmente não podiam falar comigo.

Minha mãe me contou, na época, que uma amiga minha ligou em casa chorando e pedindo explicações sobre o que tinha acontecido - quando fui desassociada, não pude sair contando para as pessoas.

Quem sabia era quem morava comigo: meu pai, minha mãe, meu irmão e minha avó. Os demais, amigos e pessoas da congregação, souberam quando foi feito o anúncio: 'Fulana de tal não é mais testemunha de Jeová'. Eles só não falam o motivo.

Ali é encerrado todo e qualquer contato até a pessoa ser readmitida. Aí, é feito um novo anúncio dizendo que ela voltou para a religião. Enquanto não há anúncio, todo o contato é cortado. Você passa por essas pessoas e não pode conversar, abraçar, sair.

Você tem que fazer novas amizades, mas se sente extremamente perdida. Se por um lado eu não podia ter contato com pessoas mundanas enquanto TJ, quando fui desassociada não podia ter contato com testemunhas de Jeová. Você se vê sozinha.

'Até hoje faço terapia'

A ideia da desassociação é que seja feito um desligamento para a pessoa encontrar o caminho de volta sozinha — para não influenciar os outros no que é errado e sentir falta da religião. É um castigo mesmo. Hoje em dia, não acho que essa disciplina esteja correta.

Fiquei depressiva e, até hoje, faço terapia — não apenas por isso, mas é uma questão. Parte da minha vida ficou ali, em espera, até eu definir se ia ou não voltar e como ia ser a minha vida do lado de fora.

Fiquei anos em dúvida entre sair de vez ou tentar fazer os devidos arranjos indicados para ser readmitida. Pensava na família, nas pessoas que deixei lá. Foi bem pesado, mas não penso mais em voltar.

Hoje em dia, não vejo mais as regras e conceitos deles como coisas que posso aplicar na minha vida no século 21. Até a questão da desassociação, eu não vejo como um ato de amor.

Acredito que isso vá contra a ideia bíblica. Na Bíblia, Jesus conta do pastor que deixa o grupo de ovelhas quando uma se perde para ir atrás dela e mostrar o caminho de volta. E isso é esquecido na desassociação.

Esse 'voltar sozinho' é muito pesado, principalmente quando se deixou familiares e amigos ali dentro."

O que dizem os testemunhas de Jeová

De acordo com os ensinamentos de testemunhas de Jeová, uma pessoa deve ser desassociada quando é cristã batizada, comete um pecado grave e não se arrepende do que fez.

Para a religião, a desassociação do chamado "transgressor" é uma decisão amorosa. E é justificada com trechos bíblicos.

"Quando uma Testemunha de Jeová pratica o que é mau, é provável que seus amigos e conhecidos fiquem sabendo disso. A desassociação mostra que Jeová tem um povo puro que se apega às normas bíblicas a fim de manter essa pureza", ressalta um dos textos disponíveis no site oficial de religião.

Na mesma publicação, é dito que "Jeová [...] ordena que evitemos pecados graves como imoralidade sexual, idolatria, ladroagem, extorsão, assassinato e espiritismo" — alguns motivos que podem levar ao desligamento involuntário da religião.

A intenção é que, com o castigo, a pessoa "caia em si", se dê conta de que errou e queira voltar a participar das reuniões — ainda que isso demore anos. Por isso, a desassociação não é considerada uma expulsão.

As orientações, escritas em 1991, indicam que os fiéis podem "mostrar amor" evitando ter contato com o desassociado e acolhendo a família. Já familiares devem evitar "todo e qualquer contato com a pessoa" porque "é uma questão de lealdade a Deus e à sua Palavra".