Policiais relatam medo, cultura de 'bicos' e extermínio: 'Em risco sempre'
Um policial foi assassinado a cada dois dias no Brasil em 2022. Segundo o 17º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, foram 172 agentes mortos no ano passado. Profissionais ouvidos pela reportagem relatam que se sentem em risco desde o primeiro momento em que são identificados como policiais.
Eles afirmam também que são vítimas da cultura de violência disseminada pelas instituições de Estado responsáveis pela segurança das pessoas e da rotina de "bicos" que mantêm para complementar a renda.
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Só pelo fato de ser policial no Rio de Janeiro já me sinto em risco o tempo todo. Se sou abordada em um assalto e identificada como policial, sou morta imediatamente.
Mônica Pinto, 57, policial civil há 20 anos
"É como se a gente enxugasse gelo"
A policial civil Mônica Pinto passou por ao menos cinco delegacias no RJ em 20 anos: Casimiro de Abreu, Santo Antônio de Pádua, Rio das Ostras, Belford Roxo e Macaé. "Enquanto continuar essa lógica de guerra de milícia e varejo das drogas, a segurança pública não funciona. É como se a gente enxugasse gelo."
Mônica afirma que a maior dificuldade da instituição é a "guerra contra as drogas". "Essa política pública é ineficaz, dura décadas e não tem perspectiva de acabar. O contingente é pequeno, e a quantidade de suicídios entre os policiais, muito significativa".
Além das investigações, ela também participava do transporte de presos. "Essa tarefa exige total atenção. A fuga é vista como negligência ou corrupção policial. São sempre operações de máximo estresse."
A policial relata condições de precarização que impactam no dia a dia de trabalho. "A quantidade de inquéritos é muito grande. Em Macaé, por exemplo, uma equipe de dez policiais chega a receber 10 mil ocorrências por ano."
O que exigem dos delegados são números, eles tratam a segurança pública como se fosse uma empresa. Um inquérito de estupro, em que há um suspeito, acaba sendo priorizado em detrimento de um com a autoria desconhecida.
Mônica Pinto, policial civil no Rio de Janeiro há 20 anos
"Escutei disparos passando a centímetros da minha cabeça"
"Escutamos os disparos, mas não sabemos de onde vêm." Uma policial civil que atua nas ruas do Rio e preferiu não ser identificada afirma que, quando são usadas armas de grosso calibre em operações, não é possível identificar a direção dos disparos.
A agente diz que viu colegas na mira de um fuzil sem poder fazer nada, na Baixada Fluminense. "Fomos cumprir um mandado de latrocínio e havia um volume muito grande de tiros de fuzil, que ultrapassam as paredes. Estava na outra ponta, observando o desespero deles. Só pensava se ia acabar a munição", conta.
Já fiquei em um plantão por quase 60 horas. Uma vez, fiquei das 6h às 2h do dia seguinte contando drogas. Era tanto pó de cocaína que saí da delegacia direto para a emergência médica. Fiquei com uma ferida na garganta.
Policial civil no Rio de Janeiro
Informar familiares sobre a morte de um colega é "perturbador", segundo ela. "Além de ver a tristeza da família, você se coloca nesse lugar."
"É uma guerra não declarada, mas uma guerra." Há nove anos como policial civil na capital do RJ, ela aponta fatores que dificultam o trabalho diário, como a falta de equipe, de computadores avançados e materiais para perícias. "Às vezes, no IML não tem um material necessário para identificar a causa de uma morte."
"Me recusei a participar de um espancamento"
Há uma "cultura de violência e extermínio" na PM da Bahia. A frase é de um agente que atua na corporação há 20 anos. O estado tem uma das polícias mais violentas do país, segundo o FBSP.
Ele revela que se recusou a participar de um espancamento após uma prisão. "Entre o que eles querem e o que a minha consciência determina, fiquei com a segunda opção. Essa violência é estruturante e naturalizada na instituição."
O PM disse que teve de pedir para ser transferido de unidade após a recusa. "O trauma permanece, mas, em geral, isso não é visto como algo que provoque sofrimento, é considerável aceitável."
"É uma tensão constante. Quando você está em uma viatura, não há um momento de relaxamento. Não há equipamento que proteja os policiais de uma lógica de guerra", diz ele, ao contar que viu um colega morrer ao ser alvejado no pescoço.
O PM afirma que condutas tendem a ser encaradas como "desvios" em casos de mortes que ocorrem após uma ação policial. "Essas mortes são vistas como efeito colateral pela polícia."
"O policial tem de ser um garantidor de direitos, não um violador. A lógica de extermínio também mata policiais, enquanto agirem com esse entendimento também serão vítimas."
Policial militar da Bahia
O que dizem as pesquisas
No ano passado, 172 policiais foram mortos. O levantamento do FBSP (Fórum Brasileiro de Segurança Pública) aponta que foram mortos 21 policiais a mais do que em 2021. Além disso, 82 se suicidaram em 2022. A mesma pesquisa aponta que o país teve 6.429 mortes decorrentes de intervenções policiais dentro e fora de serviço.
Entre os policiais assassinados, sete em cada 10 morreram durante a folga. Nos dias de folga, eles não são assistidos pelas instituições, não possuem comunicação direta por meio de rádios e não estão com viaturas para auxiliá-los.
Na região metropolitana do Rio, 100 agentes de segurança foram baleados neste ano, aponta mapeamento do Instituto Fogo Cruzado. No total, a entidade contabilizou 44 agentes mortos e 56 feridos ao longo do ano.
Muitos policiais evitam usar motos e transporte público por medo de serem abordados quando não estão em horário de expediente.
Lívio Rocha, investigador de polícia e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
"Em outros países, é obrigatória a elaboração de estudos para verificar se as mortes poderiam ser evitadas", pontua Rocha. Pesquisas que ajudam a formular políticas públicas de prevenção de riscos às atividades de agentes de segurança no país são raros, observa o doutorando em políticas públicas na UFABC.
Ações para evitar "bicos". Ele aponta medidas como análise de risco, revisão dos critérios de produtividade, incentivos ao estudo e remunerações melhores.
O que diz o governo do RJ e da BA
A Polícia Civil informou que o governo autorizou a realização de processos seletivos para reduzir o déficit de profissionais da instituição. "A pedido da atual gestão da Secretaria de Estado de Polícia Civil (Sepol), mediante apresentação de estudos pertinentes, o governador do estado autorizou o aumento do número de vagas inicialmente previstas em editais (400), chegando a um total de 1.741 vagas."
Segundo a pasta, as primeiras turmas estão em formação na Academia de Polícia Sylvio Terra (Acadepol) com previsão de conclusão até o final do ano e perspectivas de nomeações e lotações nas unidades no início de 2024.
A secretaria disse que as polícias Civil e Militar trabalham de forma integrada. "A segurança pública é tratada com responsabilidade e critérios objetivos, elaborando diagnósticos de manchas criminais e planejamentos de ações, com a integração absoluta das polícias Civil e Militar no nível estratégico, tático e operacional, buscando oferecer o melhor à população."
A respeito do Instituto Médico Legal (IML), a secretaria afirmou que "não procede a informação de falta de insumos." A pasta disse também que intervenções para melhorar instalações estão em andamento junto à Empresa de Obras Públicas (Emop-RJ).
A Polícia Militar da Bahia informou que as ações realizadas por integrantes da corporação são baseadas em técnicas e táticas de policiamento, com observação aos princípios de legalidade. Segundo a instituição, para denúncia de conduta contrária à legalidade, a PM disponibiliza a Ouvidoria e a Corregedoria da instituição.