Em 17 anos, 'cracolândia' percorre 18 ruas e volta ao mesmo lugar em SP
O fluxo de usuários de drogas na "cracolândia" do centro de São Paulo percorreu ao menos 18 vias até voltar nas últimas semanas para a região da rua dos Protestantes, mesmo local onde estava havia 17 anos.
Rastro de destruição como herança
Antes de se instalar na rua dos Protestantes, a "cracolândia" circulou entre as ruas Conselheiro Nébias e Guaianases no primeiro semestre deste ano. O UOL analisou mais de 40 registros de pontos por onde o fluxo passou e percorreu os principais locais. O levantamento usou dados da PM entre 2006 e 2023.
As ruas por onde passou nos últimos 17 anos ficam em uma área de 1 km quadrado. As 18 vias estão concentradas em cinco pontos do centro de São Paulo (veja mapa abaixo).
Em 2006, a prefeitura autorizou a desapropriação do quarteirão onde a "cracolândia" está hoje para acabar com o fluxo naquele local. Três anos depois, o então prefeito Gilberto Kassab (hoje no PSD) pediu uma sala em um prédio na rua dos Protestantes para despachar.
Vamos utilizar para reuniões e para despachar o que disser respeito ao projeto da Nova Luz. Gostei do prédio e pedi aos técnicos consultarem se é possível nos instalarmos numa salinha no térreo.
Kassab em abril de 2009
A "solução" não vingou. De lá pra cá, outros prefeitos disseram, em algum momento, que a "cracolândia" havia acabado ou que a região tinha melhorado.
Sete em cada dez paulistanos avaliam que as ações do poder público na "cracolândia" não resolvem o problema, segundo pesquisa Datafolha divulgada no sábado (2). Apenas 4% acreditam que as operações da polícia darão resultado em curto prazo.
A rua fantasma
O trecho da Guaianases entre as ruas Vitória e Aurora abriga uma "rua fantasma" com ao menos 15 comércios interditados ou com as portas fechadas. No quarteirão, só há um restaurante peruano, uma pequena barbearia e uma distribuidora de bebidas.
Um prédio de sete andares está totalmente desocupado, com placa de "aluga-se". Mesmo sem o fluxo agora, é raro ver carros. O portão de entrada de um estacionamento é mantido fechado.
Só estou aqui porque não trabalho com venda presencial. Ninguém tem coragem de pegar o celular para fazer um Pix ou abrir a carteira. Fui obrigado a demitir 14 funcionários nos últimos meses.
José Rodrigues de Farias, dono de distribuidora de bebidas há 23 anos
Antigo ponto de concentração de usuários, a praça Princesa Isabel está vazia. Em maio de 2022, a "cracolândia" saiu do endereço, após permanecer no local por cinco anos.
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Quero receberNas últimas semanas, o fluxo migrou para a rua dos Protestantes. Lá, um hotel a 30 metros da "cracolândia" passou a alugar quartos aos usuários para não fechar. O UOL flagrou o momento em que um deles entrou com cachimbo na mão. Após pagar pela locação em dinheiro, ele pegou a chave de um quarto.
Hoje sou obrigado a alugar quartos para os usuários para não demitir funcionários e para que os quartos não fiquem vazios. Depois de mais de 20 anos aqui, estou pensando em desistir.
Juarez Faula de Oliveira, gerente de um hotel próximo à "cracolândia"
Nas imediações da rua, comércios fecharam. Um prédio em frente à "cracolândia" está cercado por uma estrutura de quatro metros com arame farpado.
A professora Rose Corrêa, 64, diz sofrer ameaças. Ela se mudou em 2019 para um dos prédios da região.
A gente convive com gritos, brigas e até tiros. Os traficantes avisam que é para eu tomar cuidado, dizem que estou falando demais. Uma noite, um homem me abordou no portão dizendo: 'Vi a senhora na TV'. Quando saio de casa, tenho que avisar no grupo de WhatsApp do prédio. Quando volto, os seguranças me esperam na esquina.
Rose Corrêa, vizinha da "cracolândia"
Ações de remoção da Guarda Civil viraram "despertador". "Infelizmente, preciso viver no meio disso, sem o direito de ir e vir", afirma Rose.
"Só atendo fora daqui, porque os clientes têm medo. A sensação é de abandono do poder público", diz o comerciante Renato Maillo de Freitas, 58.
As ações sociais que faziam a conexão com as famílias acabaram. Tirar o fluxo da 'cracolândia' da Princesa Isabel só porque ali era um cartão-postal foi tiro no pé. Antes, era mais fácil mapear os usuários. Agora, foi criada uma situação de descontrole.
Fabio de Souza Lima, há mais de 25 anos na região
Em um estacionamento próximo à rua dos Protestantes, resistiram apenas veículos de mensalistas. "A rua está dominada por usuários de drogas", diz o manobrista João Souza, 48.
A "cracolândia" muda; o problema, não
O cenário de abandono não é realidade só nos locais de concentração de usuários de drogas. Ainda que o fluxo tenha saído da praça Princesa Isabel desde maio de 2022 após permanecer cinco anos por lá, o efeito devastador da passagem da "cracolândia" permanece.
Poucos comércios resistem no quarteirão da praça. O português Armando Ascenção Froz, 74, mantém uma loja de venda de veículos em frente à praça. Mas diz que os clientes ainda têm medo de ir à região. "Vivemos uma rotina de encontrar cadeados quebrados, sujeira, vidros dos carros quebrados e lojas invadidas."
"A 'cracolândia' pode ter saído da praça, mas ela continua por perto. Não tem como a situação melhorar. A maioria das lojas já fechou."
Se o senhor viesse aqui há uns dez anos para falar comigo, precisaria esperar uma hora. Hoje, eu estou disponível o tempo inteiro. A tendência é fechar a empresa até o fim do ano.
Armando Ascenção Froz, dono de revendedora de veículos
Impedido de entrar no próprio ateliê
O fluxo migrou para a rua Helvétia entre maio e dezembro de 2022. Daniel Orellana, que produzia luminárias em um ateliê na via, ficou impedido de entrar lá por sete meses. Ele só retirou os seus pertences com a chegada da PM, um mês após a chegada da "cracolândia".
Foi de uma hora para outra. Eles [usuários de drogas] simplesmente chegaram na Helvétia. Aí começou aquela correria, com os comerciantes baixando as portas. O fluxo deixou um rastro de destruição na minha vida.
Byron Segundo, que ocupou o mesmo ateliê alugado por Orellana
"Era como se eu estivesse lá dentro"
Depois de sair da Helvétia, o fluxo se espalhou pelo entorno da rua dos Guaianases no começo deste ano. Nesse período, o vendedor Rafael Barbosa passou a limpar fezes, urina e lixo antes de abrir as portas de uma empresa que vende peças de moto.
Por mais que eles [usuários de drogas] não estejam mais aqui, a fama ficou. O reflexo disso é que os clientes não querem mais vir para cá por medo
Não são só usuários de drogas. São pessoas que não têm onde morar. Há famílias inteiras, que saíram de áreas desapropriadas.
Danielle Mendes, 30, cabeleireira, que vive em um prédio em frente ao fluxo da rua Vitória e que convive com a movimentação desde a adolescência
Governos não encontraram solução
A reportagem procurou os ex-prefeitos de São Paulo e apenas Kassab, atual secretário de Governo do estado, respondeu. Segundo o ex-prefeito, "se os projetos tivessem continuidade, ainda que fossem aprimorados de acordo com as crenças da gestão encarregada, o poder público poderia ter avançado muito mais".
O prefeito Ricardo Nunes (MDB) não respondeu objetivamente aos questionamentos, mas afirma prestar serviços na região e cita incentivos fiscais para aumentar o número de lojas e residências. A prefeitura não se manifestou sobre as razões pelas quais o fluxo voltou ao local que havia estado em 2006.
Tarcísio de Freitas (Republicanos), governador do estado, diz ter ampliado ações sociais, de saúde e de segurança. A Secretaria da Segurança Pública diz ter intensificado o patrulhamento na região, citou queda de roubos e furtos e prisões de suspeitos por tráfico.
Precisamos discutir a 'cracolândia' a partir de uma política tripé, que deve ser desenvolvida com foco em moradia, inserção profissional e tratamento da saúde. É uma agenda política, mas a solução não virá em uma única gestão.
Aluízio Marino, pós-doutorando pela FAU-USP e coordenador do LabCidade
É preciso cobrar a responsabilização da situação para prefeitura e governo estadual para que se tenha uma ação integrada, e que não seja essa de deslocar o fluxo de um lado para o outro. Para cada estágio de dependência é necessário implementar um modelo de atuação.
Margareth Uemura, urbanista e coordenadora executiva no Instituto Pólis
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