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'Minha mãe, que me marcou com colher quente, pediu perdão antes de morrer'

Naomi foi agredida, humilhada e abandonada pela mãe, que pediu perdão quase 30 anos depois, dias antes de morrer Imagem: Arquivo pessoal

Maurício Businari

Colaboração para o UOL

04/10/2023 04h00

Naomi Marques, 45, uma mulher trans, teve a vida marcada por violências —de abusos sexuais a agressões. Nem a sua mãe aceitava sua identidade de gênero e sexualidade, e ela acabou expulsa de casa aos 14 anos. Ao UOL, ela conta sua história.

'Mulher num corpo estranho'

"Morávamos na periferia de São Vicente, no litoral de São Paulo, em uma casinha simples. Minha mãe, que veio da Bahia tentar a vida em São Paulo, era doméstica e trabalhava o dia todo. Nunca soube quem é meu pai e contava com a ajuda das vizinhas até para comer.

Minha mãe me deixava com uma babá, que abusou sexualmente de mim. Também sofri abusos de um homem que trabalhava em um bar e me fazia sentar no colo dele, passava a mão em mim.

Naomi, em dois momentos: na infância, ao lado da avó "postiça"; e no início da adolescência, já com "trejeitos" femininos Imagem: Arquivo Pessoal

Eu tinha trejeitos, era muito feminina e minha mãe odiava e desprezava isso. Eu mesma não me aceitava, mas, desde sempre, fui uma mulher num corpo estranho.

Quando cresci, meu padrasto, pai dos meus irmãos, também passou a abusar sexualmente de mim todas as vezes que bebia. Sofria calada, mas aquilo foi me revoltando e comecei a me rebelar.

Comecei a cortar minhas camisetas para chamar a atenção da minha mãe, a tomar hormônios escondidos, a mostrar o que realmente eu era. Entendi o que era uma mulher trans, conheci as travestis.

Colher quente

Um dia, por causa de uma fofoca feita por dois meninos, que disseram que eu estava com rapazes do bairro, minha mãe enlouqueceu. Tomei uma surra.

Ela pisou no meu pescoço e enquanto me batia, falou: 'Quer ser viado, então vai ser um viado marcado, porque não botei viado no mundo.'

Pegou uma colher que esquentou no fogo e grudou no meu rosto.

Isso eu não consigo superar. Só eu sei a dor que senti. E não só a dor física, tinha a dor da alma. Ela era o ventre que me gerou e me expulsou de casa aos 14 anos.

Minha mãe estava de malas prontas para se mudar para Peruíbe [SP] e disse que queria morar o mais longe possível de mim. Mandou que eu procurasse 'meus iguais', 'travestis' como eu.

Comecei a chorar, vendo a camionete ir embora, meus irmãos chorando. Eu cuidava deles, era como a mãe deles.

A partir daí, morei de casa em casa. Até que fui parar na casa de uma travesti, que me ensinou a ganhar a vida nas ruas como prostituta. Travesti mesmo, porque na época não existia o conceito de transgênero.

Após se viciar em crack e comer lixo nas ruas, Naomi consegue se recuperar e vai viver na Europa Imagem: Arquivo Pessoal

Drogas e vida na Europa

Esse é um caminho sem volta. Logo as drogas entraram na minha vida e, a partir daí, comecei a me perder na cocaína para ficar acordada durante a noite, me viciei em crack. Perdi tudo o que havia ganhado, fiquei magra, revirei lixo para comer. Dormi muito tempo nas ruas. Mas, lá no fundo, ainda tinha esperança de ter uma vida glamorosa.

Eu ia para as portas das boates para observar as travestis montadas chegando para os shows. Um dia, conheci uma delas, que me chamou para conversar. Contei tudo o que tinha passado e ela resolveu ser minha madrinha. Me ajudou em tudo o que podia.

Eu larguei as drogas e, quando menos esperava, estava embarcando para a Itália. A Tila, esse era o nome dela, pagou minha passagem e fiquei nove meses lá. Conheci a França, estive na Torre Eiffel, quando voltei ao Brasil, em 2017, surgiu a vontade de rever minha mãe.

Falei com meus irmãos e combinamos de nos ver no Natal. No dia 22 de dezembro, fui à casa dela, em Peruíbe. Conversamos, brincamos, fizemos uma foto: eu a beijando no rosto, que transformei em quadro.

Ela falou para mim: 'Filha, te amo muito, cuidado, tenho medo de perder você. Eu fiz tanto mal para você, mas te peço perdão. Não entendia o que você era e hoje entendo. Sei que você passou por tanta coisa para sobreviver'.

Desabei. Ela me levou até a porta, o tempo fechou do nada e fui embora. Três dias depois, ela morreu — no dia de Natal.

Foi muito difícil para mim, mas aquele último abraço e pedido perdão por tudo o que me fez sofrer foram muito importantes para mim.

Hoje busco ajudar outras trans que, como eu, não tiveram lugar em suas famílias. Passo minha ceia de Natal com pessoas que moram na rua porque um dia eu morei na rua e não tive quem estivesse comigo ali do lado.

Sei que sou como uma fênix: renasço das cinzas se for preciso. E posso ser uma voz, um elemento de mudança na vida das pessoas."

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