'Perdi o ônibus pensando em você': pesquisadora 'coleciona' pichações no CE
"Saudade dela", "nas ruas do Benfica eu te amei", "perdi o ônibus pensando em você" e "ei, pés bonitos, dança em mim". Essas foram algumas das inscrições em muros da cidade de Fortaleza que chamaram a atenção da pesquisadora da UFC Lara Denise Silva por volta de 2018, quando ela começou o projeto de doutorado. As inscrições deram origem ao livro "Fortaleza de afetos".
Nessa época, Fortaleza figurava em sétimo lugar como cidade mais violenta do mundo. No ano seguinte, a Região Metropolitana da capital cearense foi considerada a mais violenta do país. A poesia veio como contraponto.
'Fortaleza de afetos'
Poesia contra a violência. Como uma tentativa de contrapor narrativas que resumiam Fortaleza a uma cidade do turismo ou da violência, a pesquisadora começou a catalogar as demonstrações públicas de afeto nas ruas.
Foi uma tentativa de dizer 'não vamos negar que Fortaleza é uma cidade violenta', mas há, ao mesmo tempo, muitas iniciativas que buscam resgatar essa ocupação da cidade, que demonstram que é possível estar na cidade. Tem muita violência, mas também tem muita pulsão de vida.
Lara Denise Silva
Por cerca de quatro anos, a pesquisadora fez fotos de escritos nos muros da cidade, que chamou de "escritos de rua". São pichações, stencils, registros que não se enquadram nas classificações de 'pixo' ou de grafite, mas que estão nessa linha fronteiriça. O catálogo virou um perfil no Instagram, o @umafortalezadeafetos.
Fui reunindo uma série de inscrições que representam os afetos que ocupam o espaço público. Essas declarações, embora elas sejam privadas, quando eu coloco na cidade, elas passam a ser públicas, há uma coletivização de sentimentos individuais. Lara Denise Silva
Sob pseudônimos ou anonimato, a pesquisadora conseguiu encontrar alguns dos autores das 'pichações afetivas'. Um deles, identificado no livro apenas como "professor", revelou que um dos escritos foi feito na rua onde morava uma ex-namorada dele, que era bailarina. "Ei, pés bonitos, dança em mim" é a inscrição dedicada.
As demonstrações, no entanto, não se resumem a temas amorosos. Frases de indignação, de teor erótico, palavras soltas, letras de música e até escritos aparentemente sem sentido foram registrados nos muros da cidade. Os "escritos de rua" também revelam a diferença territorial.
Palavras de ordem. "Eles dizem muito da geografia da cidade. Se você se afasta da região central, onde está a Praia de Iracema, e vai para regiões periféricas, o tipo de inscrição é outro. São mais palavras de ordem, mais imperativas, mais ligadas à organização", observa a pesquisadora, que relaciona esse "ordenamento" à presença de organizações criminosas.
No espaço público, as pichações estão sujeitas a intervenções. Frases são complementadas por outras pessoas, que adicionam outros contextos à escrita que é, essencialmente, efêmera. Para a pesquisadora, os "escritos de rua" revelam uma nova forma de experimentar a vida urbana, a construção de um livro público da cidade.
Acho que a gente está vivenciando outra sensibilidade urbana, que a gente precisa talvez de mais tempo e mais recursos para olhar pra ela. É outra forma da gente se relacionar entre nós e com a própria cidade, e esses elementos parecem ser uma materialidade disso. É uma coisa para a gente ir pensando. Lara Denise Silva
Cidade que tinha um canhão apontado para si
Facções aumentaram a tensão na cidade. A chegada de facções do Rio e de São Paulo e o surgimento de organizações criminosas locais nas periferias de Fortaleza elevaram os índices de homicídio nesse período.
Mas a pesquisadora aponta que a própria origem da cidade, batizada com nome de forte, já revela que a violência sempre se fez presente na região. Segundo a historiografia cearense, a vila que seria Fortaleza chegou a ter um canhão apontado não para os invasores externos, mas para a própria vila.
"Fortaleza já dá essa ideia de proteção, da segurança pública, de se proteger do diferente. E é muito simbólico que essa proteção, esses canhões estavam voltados para a vila. Não era o medo da invasão, era o medo da mistura com quem estava ali", Denise Silva.