Ciganos perdem R$ 600 milhões em golpe do ouro: 'Foram à miséria total'
Abinoan Santiago
Colaboração para o UOL, em Florianópolis
01/11/2023 04h00
A promessa de lucro de 100% em 30 dias fez o autônomo Guilherme Armando, de 23 anos, ter pressa para vender o carro dele por R$ 150 mil para investir em ouro. O negócio com retorno em dobro ainda atraiu os parentes dele, que, ao todo, investiram R$ 2 milhões desde fevereiro de 2023. Tudo, porém, não passava de um golpe que pode ter feito 2 mil vítimas na comunidade cigana.
O "golpe do ouro", como ficou conhecido entre as vítimas, é liderado por Oscar Gaich, o Yoska, e Oscar Gaich Filho, o Tato, segundo a Polícia Civil. Eles são pai e filho de uma família cigana tradicional de São Paulo. Eles teriam embolsado pelo menos R$ 600 milhões de seus "irmãos" ciganos, aponta levantamento inicial da investigação.
O número de vítimas que já procuraram a delegacia após o caso vir à tona é de 300, mas representantes das vítimas ciganas projetam 2 mil espalhadas entre Brasil, Argentina, México e Estados Unidos.
"Um cigano dar o golpe na própria comunidade é a primeira vez que tenho ciência. Nunca vi nada parecido", conta surpreso José Eduardo Savóia, advogado que há décadas representa famílias ciganas e que foi procurado por parte das vítimas.
Os dois mentores foram presos temporariamente na quinta-feira (26) por estelionato e organização criminosa, levando uma multidão em frente ao Deic (Departamento de Investigação Criminal), em São Paulo, para cobrar o dinheiro perdido.
"O número de dinheiro envolvido cresce todos os dias, assim como o das vítimas. Virou um trabalho de mutirão na delegacia", comenta o delegado Luiz Alberto Guerra, do Deic.
O UOL tentou por dois dias contato com o advogado Adib Abdouni, que representa pai e filho, mas não obteve retorno. O texto será atualizado em caso de manifestação da defesa. À TV Globo, o advogado disse que "outros sujeitos" estão com o dinheiro das vítimas e que vai "demonstrar que os clientes não estão envolvidos na trama".
Vítimas eram atraídas com luxo e ostentação dos golpistas
De acordo com a Polícia Civil, o golpe começou em fevereiro de 2023. Pai e filho são empresários e teriam aproveitado da credibilidade que a família cigana nutria dentro da comunidade para o falso investimento.
Em um vídeo, Tato diz que o retorno do dinheiro investido era de 50% em 15 dias e 100% em 30 dias. A família cigana alegava que usava o dinheiro do investimento para comprar, a preço baixo, quantias de ouro de um fornecedor para depois revendê-lo por até quatro vezes mais caro. O lucro disso era o que sustentaria os pagamentos dos investimentos.
Para chamar a atenção dos ciganos, a família ostentava nas redes sociais com malas de dinheiro, joias caras, carros de luxo e morava em uma mansão no Jardim Europa, bairro da elite paulistana. A intenção, segundo a investigação, era dar aparência de que o negócio dava certo.
Foi assim que Guilherme se sentiu atraído. Ele vendeu um carro avaliado em R$ 200 mil por R$ 150 mil na esperança de recuperar dobrado o valor do investimento.
"Era um retorno absurdo. Nem nos melhores bancos não seria assim. Ele dizia que exportava ouro para fora do país e prometia lucro em cima disso", ratifica ao UOL.
Se você abre o Facebook e vê malas de dinheiro com o cara, o que pensa? Isso dava sensação de que estava tudo certo, ainda mais quando ele pagava no dia certo para a gente reinvestir. Guilherme Armando, cigano de 23 anos
Guilherme afirma que lucrou R$ 280 mil em sua carteira de investimentos, mas que não pegou no dinheiro.
"Deixei lá reinvestido. Eles postavam fotos das malas com dinheiro e isso atraiu. A gente acabou se enganando. (...) Na minha família, praticamente todo mundo entrou no negócio. Meu irmão, duas irmãs, meus primos. Acho que perdemos algo próximo de R$ 2 milhões só da minha família".
'Tudo o que eles diziam, a gente acreditava'
O mesmo aconteceu com o funcionário público Fernando (nome fictício), de 28 anos. Também cigano, ele se desfez de dois carros e de um jet-ski, em julho, para investir R$ 350 mil em ouro com a família Gaich e agora acumula prejuízos.
"De primeira, não acreditei, mas o problema é que essa família tinha muita credibilidade na comunidade. Eram a figura perfeita para montar um golpe. Tudo o que eles diziam, a gente acreditava", conta o funcionário público, que prefere não ser identificado.
Ele afirma que chegou a ver o dinheiro render por cinco meses, mas que não resgatou o valor por esperar crescer ainda mais o lucro.
"Durante meses, todo mundo foi pago rigorosamente. Eu só tomei o prejuízo por ambição por ter deixado o dinheiro lá", lamenta o servidor público, que registrou boletim de ocorrências para tentar reaver pelo menos parte do dinheiro.
Falhas no pagamento revelaram golpe e deixaram famílias sem casa
O advogado Marcos Manteiga, que representa 100 vítimas, afirma que os ciganos caíram no golpe pela própria tradição da relação interpessoal na comunidade.
"O cigano valoriza muito a palavra e aperto de mão. Eles começaram em fevereiro e havia testemunho de muitos outros ciganos dizendo que receberam retorno nas redes sociais. Até então, eram pessoas que gozavam de credibilidade, principalmente com a ostentação com carros de luxo, compras de joias e malas de dinheiro", relata.
O golpe começou a ruir quando os pagamentos passaram a falhar logo na primeira semana de outubro.
"A gente só percebeu que era um golpe quando eles começaram a atrasar pagamentos. Eles diziam que as contas estavam travadas ou que excediam os limites diários de Pix, pois só poderiam transferir R$ 8 milhões", acentua a vítima Guilherme.
Os ciganos tiveram a certeza do golpe quando foram à mansão da família Gaich e descobriram que pai e filho se escondiam em um hotel de luxo. "Arrombaram o portão e viram que não tinha mais ninguém lá. Gerou um desespero".
Manteiga, que ainda é procurado pelas vítimas, lista que os prejuízos acumulados pelos ciganos que acreditaram no golpe são os mais diversos, desde gente que emprestou de agiota até quem hoje não tem mais nem casa para morar porque decidiu vendê-la para investir.
Era comum cigano vender casa de R$ 1 milhão por R$ 700 mil porque esperava R$ 400 mil de retorno imediato, podendo chegar a R$ 5,6 milhões no terceiro mês. Hoje tem gente que não tem casa para morar. Outros foram para a miséria total, dependendo da vaquinha da comunidade. Marcos Manteiga, advogado dos ciganos
Golpe do ouro tinha estrutura de empresa com 50 pessoas
O Deic da Polícia Civil de São Paulo investiga o caso desde 15 de outubro. Segundo o delegado Luiz Alberto Guerra, antes de as investigações se concentrarem no departamento, outras 100 vítimas já haviam registrado boletins em delegacias do interior.
"Uma advogada passou toda a situação e ficou mais claro que era uma organização criminosa, com um volume muito grande de recursos e envolvidos", resume.
A prisão temporária de pai e filho foi prorrogada na segunda-feira (30) pela Justiça pelo prazo de mais cinco dias.
"Representamos pela prisão para possibilitar que a gente continue investigando recolhendo dados de outras vítimas. Estamos tentando colocar nos autos todas as provas e levantamento dos bens dos suspeitos para eventualmente pedir o bloqueio para ressarcir as vítimas", afirmou.
De acordo com Guerra, a atipicidade do caso fez a delegacia criar um "mutirão" para receber as vítimas. O número grande de ciganos no prejuízo se deve à estrutura montada pela família Gaich no negócio, com 50 pessoas divididas entre captadores de novos investidores, tesoureiros, gerentes e administradores. "Em breve iremos pedir a prisão de vários".
Os suspeitos são investigados por estelionato e associação criminosa. A Polícia Civil ainda se debruça sobre os bens da família cigana para saber se houve a prática de lavagem de dinheiro. Eles ainda não foram ouvidos, mas na delegacia não demonstraram arrependimento.
Não é pirâmide porque eles não precisavam de mais gente para o negócio funcionar. É estelionato puro mesmo. Pegavam o dinheiro das pessoas e não usavam em nada. A rentabilidade paga aos primeiros era apenas para atrair mais gente. Foi ganância. Ficamos impressionados com a frieza deles em um questionamento informal. Luiz Alberto Guerra, delegado do Deic