Negros são mais presos em patrulhamento; brancos em operações, diz estudo
Do UOL, em São Paulo
23/11/2023 07h00Atualizada em 23/11/2023 16h41
Um levantamento que analisou 114 prisões por tráfico de drogas no estado de São Paulo identificou que a maioria dos negros presos foram detidos em patrulhamento ou por denúncia anônima, enquanto operações policiais após investigação embasaram a maior parte das prisões de pessoas brancas.
O que acontece
Negros são 56% dos presos durante patrulhamento. Entre os detidos em razão de denúncia anônima, 52% são pessoas negras. Já entre os presos em operações policiais, brancos respondem por 63% do total.
As prisões em patrulhamentos se dão com base em critérios considerados mais subjetivos. Já as operações acontecem após o levantamento prévio de indícios de eventual participação em crimes — o que permite a identificação do suspeito antes da prisão.
Os dados foram compilados pela Iniciativa Negra por uma Nova Política Sobre Drogas. O estudo foi desenvolvido em parceria com a Defensoria Pública de São Paulo que, em 2020, entrou com pedidos de habeas corpus nos 114 casos analisados — de pessoas condenadas pela Lei de Drogas.
Tráfico de drogas é o crime que mais prende no Brasil. De acordo com a edição mais recente do Levantamento de Informações Penitenciárias, produzido pelo Ministério da Justiça, a tipificação responde sozinha por quase 160 mil das 750 mil incidências registradas no segundo semestre de 2022 — 20% do total.
A Polícia Militar afirmou que pode fazer "busca pessoal" em abordagens sempre que houver "fundada suspeita". Segundo a corporação, o direito é garantido pelo Código do Processo Penal.
"Abordagem policial obedece aos parâmetros técnicos disciplinados por Lei", diz Polícia Militar. Após a publicação do texto, a corporação informou que "tem buscado evoluir e aprimorar sua atuação de maneira contínua" por meio de ajustes na formação de policiais e outras iniciativas.
Medidas parecidas foram adotadas pela Polícia Civil. Segundo a instituição, os ajustes têm o objetivo de que "o policial civil, no desempenho da sua atividade, possa atuar em conformidade e respeito a princípios basilares do Estado Democrático de Direito.
Violência contra negros na hora da prisão é mais frequente
Pretos e pardos representam 66% dos alvos de violência policial identificados pelo estudo. O percentual é maior do que a fatia dos negros nas 114 prisões analisadas, que é de 54%.
Em todos os casos, os detidos foram condenados à prisão pela Justiça. Porém, em 93% das situações, as penas tinham duração total de até dois anos — o que, segundo especialistas, indica que as prisões se deram por pequenas quantidades de drogas, menos efetivas para o combate ao tráfico.
O estudo identificou quatro razões recorrentes para prisões. Atitude suspeita, ser "conhecido da polícia" ou alvo de denúncia anônima e presença em local próximo a ponto de venda de drogas foram motivos citados pelos policiais para as prisões nos 114 casos analisados.
Especialistas questionam critérios para prisões. Eles citam a falta de definição clara do que é "atitude suspeita" e a identificação de supostos suspeitos por meio de passagens pelo sistema penal como alguns dos problemas. A investigação enviesada de denúncias anônimas é outra questão apontada.
Se um local é identificado como ponto de comércio de drogas, por que não houve ação de inteligência anterior para atacar o problema? Ter um conhecido no mercado de drogas é argumento para acusar alguém de associação e participação no tráfico?
Juliana Borges, coordenadora de advocacy da Iniciativa Negra
Atravessada pela violência policial
Amanda Rodrigues, 28, viu seis familiares serem vítimas de violência policial. Em abril de 1995, ano em que nasceu, a jovem conta que perdeu o pai, usuário de drogas, após uma abordagem da polícia. Moradora do bairro de Guaianases, na zona leste da capital paulista, ela diz que teve mais cinco primos e dois tios abordados por policiais.
Em agosto de 2021, ela afirma que dois familiares próximos foram presos acusados de tráfico de drogas. "Meu primo e minha prima foram abordados perto de uma casa bomba (ponto de venda de drogas). Ele foi abordado e ela viu a abordagem truculenta", diz.
Amanda diz que a prima correu até o local e pediu à polícia para que não matasse o irmão. "Ela pediu pelo amor de Deus. Mas ambos foram presos e criminalizados como traficantes", afirma. Segundo ela, a prima ficou ao menos seis meses presa até a audiência.
Após a audiência, o primo de Amanda, de 19 anos, foi condenado e a prima, de 18, absolvida. "Ele era pai e um dos provedores da família. Com a prisão, a mãe dele teve que assumir as despesas." A família teve de arcar com os gastos para o jumbo - o kit de itens de alimentação e higiene enviado para pessoas privadas de liberdade.
Entre a morte do pai e a prisão dos primos, Amanda afirma que "nada mudou". "É um ciclo de violência que se repete e atravessa a vida de toda a família. Fui criada em meio a esse contexto."
Amanda diz que por ter vivido em um bairro periférico de São Paulo também enfrentou riscos de ser abordada por policiais. "Cresci ao lado de uma biqueira, correndo o risco de ser criminalizada. Mas, comecei a entender que não era algo só da minha família, mas uma questão social e racial", diz.
Quando crescemos num contexto de violência e violações, crescemos traumatizados. Minha família se culpava muito. Minha avó se perguntava 'onde a gente errou'.
Não importa se você é trabalhadora ou bandida, basta ser parte de um território vulnerabilizado, já se é estigmatizado. Viver nessas condições impactou minha vida.
Amanda Caroline Rodrigues, familiar de pessoas privadas de liberdade, pesquisadora e integrante da Amparar
'Engrenagem movida para a condenação'
As prisões e as sentenças proferidas aos envolvidos são baseadas em testemunhas policiais, segundo Amanda. Ela é pesquisadora e articuladora política da Amparar (Associação de Amigos e Familiares de Presos/as). "A maioria é presa com pouca quantidade de drogas, em crimes sem violência ou grave ameaça."
Autores das prisões foram as únicas testemunhas em 99 dos 114 processos. Para Juliana Borges, a situação é ruim, já que os policiais são parte interessada na prisão dos suspeitos. De acordo com o estudo, apenas 15 ocorrências tiveram testemunhas civis.
79% das prisões ocorreram em via pública
O estudo mostra ainda que 17% das detenções se deram em domicílios e 3% em estabelecimento comercial. Em um dos casos, a pessoa foi presa por tráfico em uma unidade prisional.
Embora as abordagens policiais ocorram em sua grande maioria em locais públicos, as feitas em residências são vistas com preocupação. A pesquisa revela que em 12 casos não havia informação sobre a autorização para a entrada dos policiais nos domicílios.
A violência policial no momento da abordagem pode levar a condução às residências, segundo a integrante da Amparar. "A pessoa é abordada, enquadrada, questionada e intimidada a ser conduzida até a casa", diz Amanda.
O testemunho policial é usado para condenar pessoas. "Existe uma engrenagem que vai do patrulhamento, do testemunho policial até a condenação das pessoas. O argumento mobilizado pelo Judiciário utiliza os relatos de policiais em detrimento dos demais."
Aumentar o punitivismo da Lei de Drogas só fomenta a violência. O aumento do punitivismo prevê ações focadas em populações vulnerabilizadas que já sofrem pela falta de moradia, lazer, mobilidade urbana.
Amanda Caroline Rodrigues, familiar de pessoas privadas de liberdade e pesquisadora
Faltam critérios objetivos para distinguir usuário de traficante e que possam basear as abordagens. O que existe é uma estrutura que funciona a partir de modelos pré-estabelecidos e preconceitos e que não gera redução da criminalidade nem sensação de segurança
Juliana Borges, coordenadora de advocacy da Iniciativa Negra