Militar em protesto e cota feminina: o que pode mudar com nova lei da PM?
Abinoan Santiago
Colaboração para o UOL, em Florianópolis
30/11/2023 04h00
A lei orgânica nacional das PMs (Polícias Militares) e dos Corpos de Bombeiros foi aprovada em 7 de novembro, e agora depende da sanção do presidente Lula para padronizar as normas das corporações em todo país. Para entidades civis, porém, a nova legislação dará grande poder às polícias. Já representantes da classe policial elogiam boa parte da lei.
O debate em torno do projeto foi marcado por pressão de entidades civis, que queriam vetos a artigos, e pelo apoio intenso da ala bolsonarista do Congresso Nacional.
O que dizem entidades
A nova lei não revoga, mas atualiza um decreto de 1969, criado com base no AI-5 da Ditadura Militar, que rege as corporações.
Foi um projeto para fortalecer a autonomia das polícias e o processo de militarização. Estamos dando mais poder. Cada vez mais elas ficam sem controle.
Fransérgio Goulart, do Grupo de Trabalho de Defesa da Cidadania, composto pelo MPF-RJ, OAB-RJ e Defensoria Pública
Ela traz um avanço porque padroniza a organização das corporações, dos efetivos, das garantias e das vedações do policial militar.
Tenente Luís Cláudio de Jesus, diretor jurídico da Anermb (Associação Nacional de Policiais Militares e de Bombeiros)
O que muda com a nova lei
- Comando das PMs fica subordinado ao governador.
- PMs podem produzir e executar ações de inteligência e contrainteligência.
- PMs são obrigadas a ter ouvidorias militares com subordinação do Comando-Geral.
- PMs ficam proibidos de manifestação política usando meios da corporação, como farda.
- Cota de 20% das vagas para ingresso de mulheres nas corporações.
- Obriga bacharelado em direito para cargos de chefia, administração, direção e cargos correlatos.
Ouvidorias
Se o trecho das ouvidorias obrigatórias nas PMs for sancionado por Lula, especialistas dizem que a sociedade pode perder ouvidorias externas —elas servem como elo entre o cidadão e o serviço público, recebendo denúncias, críticas e sugestões sobre o trabalho.
A lei não proíbe as ouvidorias externas, mas força seu desuso, diz Renato Lima. "Os governadores não estão proibidos de criar ouvidorias externas, mas isso pode fazer o Tribunal de Contas questionar o motivo de ter duas para o mesmo objetivo, causando duplicidade de gastos. Como a lei obriga na PM, a externa fica prejudicada."
"É muito ruim porque tira do controle externo essa ferramenta e até mesmo o acesso de policiais que usam desse meio, pois elas recebem denúncias não apenas do cidadão, mas também dos militares. Vinculada ao comandante, também fecha a porta aos pares", diz Carolina Ricardo, do Instituto Sou da Paz.
Os militares contestam essa interpretação e consideram que as ouvidorias internas serão "uma ferramenta a mais".
"Entendemos que os militares já apuram com muito rigor os desvios de conduta. Essas ouvidorias são mais mais um mecanismo para isso. Será apenas uma ferramenta a mais para a sociedade levar suas reclamações", afirma o tenente Luís Cláudio de Jesus, diretor jurídico da Anermb (Associação Nacional de Policiais Militares e de Bombeiros).
Manifestação política de militares
A lei orgânica veta o uso de meios da corporação, como farda, para situações de caráter político-partidário. Isso foi considerado uma vitória dos militares.
"Com a discussão que se acirrou de militares na política nos últimos anos, o que foi inserido na lei é um mecanismo para deixar isso claro. O militar continua como um cidadão, mas a sua opinião política não pode ser usada através de meios militares", afirma o tenente Luís Cláudio.
Por outro lado, entidades veem que a lei se mostra omissa ao não vetar a participação de militares à paisana. Em 2021, por exemplo, o ex-ministro da Saúde, o general Eduardo Pazuello, não usou farda em um ato político ao lado do então presidente Jair Bolsonaro, no Rio, e foi absolvido pelo Exército.
"Esse dispositivo não vai mudar em nada porque os regulamentos já proíbem, mas abre margem para que, se o militar estiver sem farda, possa participar", diz Renato Lima.
Cota feminina
O artigo 15 da lei diz que é "assegurado" o mínimo de 20% das vagas de concursos públicos para mulheres.
Para o GT em Defesa da Cidadania, o percentual desestimula o ingresso na corporação. O ideal, segundo a entidade, seria não estipular mínimo ou máximo. "Não tem equidade. É um retrocesso em relação a essa questão", diz Fransérgio Goulart.
O mesmo entendimento tem Carolina Ricardo, do Sou da Paz. "O percentual para as mulheres, da forma como está redigido, dá a entender que é um teto."
Os militares defendem a cota, mas consideram que esse trecho pode ser alvo de ações judiciais. Em setembro, o ministro Cristiano Zanin, do STF (Supremo Tribunal Federal), suspendeu o concurso da PM do Distrito Federal em razão da cota de 10%. Ele considerou que a reserva de vagas vai contra a igualdade de gênero.
"Atualmente, a maioria das legislações estaduais estabelece 10%, então vai dobrar com essa nova lei. Agora, esse dispositivo deve gerar ainda grande discussão no próprio poder judiciário", diz o tenente Luís Cláudio.
Comando da PM subordinado ao governador
O artigo 7 da lei diz que policiais militares e bombeiros devem se subordinar aos governadores. Isso esvaziaria a função das Secretarias de Segurança Pública, que têm a missão de coordenação das forças policiais, dizem entidades civis.
A Anermb, maior entidade de classe das polícias estaduais, refuta essa possibilidade e diz que isso "não influencia em nada".
Não está dito de maneira clara, mas quem é especialista como a gente sabe que o projeto dá um pontapé para os estados acabarem com as secretarias de Segurança Pública. É mais uma forma de não poder exercer o controle civil.
Fransérgio Goulart, membro do Grupo de Trabalho de Defesa da Cidadania
O projeto é mal redigido para a sociedade, mas bem redigido para a polícia. Aumenta demais o poder de barganha do comandante-geral.
Renato Lima, presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
Bacharel em direito para cargos de gestão
Outra novidade é a obrigatoriedade do bacharelado em direito para militares que ocuparem cargos de oficiais.
Isso é uma bobagem, só aproxima mais [o militar] da carreira jurídica, de querer ser uma espécie de promotor ou juiz [dentro da corporação], sendo que o conhecimento do policial deve ser mais amplo, como de gestão estratégica, de pessoas e de criminologia.
Carolina Ricardo, do Sou da Paz
O ponto também não agradou os militares. Eles dizem que o ideal seria ter uma carreira única, começando desde soldado para todos e com igual nível de escolarização, e não com militares já iniciando como oficiais devido à formação acadêmica.
A divisão entre praças e oficiais com formação em direito seria uma espécie de "segregação", consideram.
"Deveríamos ter carreira única e com nível de escolaridade igual para o ingresso. Há diferenciação com a divisão de quadro e com isso nós não concordamos. Mas, infelizmente, nem sempre ganhamos tudo, principalmente para poder destravar o projeto no Congresso", diz o tenente Luís Cláudio, da Anermb.
Ações de inteligência da PM
Com atividade-fim baseada em operações ostensivas, a PM também ganha em lei o direito de "produzir, difundir, planejar, orientar, coordenar, supervisionar e executar ações de inteligência e contrainteligência".
Entidades civis pontuam que o trecho tem o problema de não limitar o poder da PM, podendo invadir a função da Polícia Civil.
Para os militares, o limite da PM "já existe nos estados" e respeitam "muito o papel da polícia judiciária".
"Houve omissão para delimitar mais sobre o uso da força e gestão de protocolos das polícias", diz Carolina Ricardo.
Avanço singelo
Apesar dos impasses, o projeto demonstra singelo avanço, avaliam entidades, ao obrigar as polícias a publicar os seguintes relatórios anuais:
- Denúncias recebidas e apuradas contra militares, com divulgação dos tipos de sanções aplicadas;
- Quantidade de atendimentos policiais, por tipo de ocorrência;
- Letalidade e vitimização de policiais e de civis;
- Orçamento previsto e executado.
A lei não teve grandes avanços a não ser ter o processo de burocratização da atividade policial, como relatórios de gestão. Mas na essência ela é quase como uma casca para um todo no qual a origem está contaminada.
Renato Lima, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
"Poderia ter muito mais informação, mas já é um avanço porque hoje em dia não tem uma padronização do que é para ser público. A taxa de letalidade, por exemplo, a gente caça em outras fontes", diz Carolina Ricardo.