Governo Lula não consegue frear mortes de yanomamis e é alvo de críticas
Apesar de ter declarado situação de emergência no território yanomami no primeiro mês de mandato, o governo Lula (PT) não conseguiu frear a mortalidade do povo indígena em 2023.
O que aconteceu
O Ministério da Saúde registrou 308 mortes na Terra Indígena Yanomami nos primeiros 11 meses de 2023. O dado mais recente vai até o dia 30 de novembro e não conta os casos de dezembro. Em 2022, segundo a pasta, foram 343 mortes no total.
Das 308 vítimas, mais da metade (162) são crianças de 0 a 4 anos. Destas, 104 eram bebês de até um ano —mais de um terço dos casos.
A mortalidade infantil no território yanomami é comparável à dos países com os piores índices do mundo. Em 2020, ano mais recente com o dado disponível, a taxa de bebês mortos com menos de um ano foi de 114,3 para cada mil nascidos vivos, quase dez vezes mais que a do Brasil (11,5).
O número de mortes no território cresceu no segundo semestre do ano passado. Até 23 de junho, segundo o governo, foram registradas 136 mortes, e nos cinco meses seguintes foram mais 172 ocorrências. Casos de malária, gripe e doenças diarreicas também cresceram na segunda metade de 2023.
Entidades de defesa dos indígenas veem falta de articulação no governo brasileiro. Para o ISA (Instituto Socioambiental), que publicou em agosto um relatório sobre a persistência dos problemas na região, a expulsão dos garimpeiros, no começo de 2023, não foi seguida de um trabalho coordenado para estabilizar a situação.
O território yanomami passa por um processo de destruição que vem de muitas décadas. Obviamente, isso não vai mudar em um ano. Mas poderia mudar mais rapidamente se houvesse uma mobilização organizada. Eu diria que o governo subestimou o problema.
Estêvão Senra, pesquisador do ISA
Planalto anuncia 'casa de governo' para ampliar presença
O prolongamento da crise levou o Ministério Público Federal e o Judiciário a pressionarem o governo. No fim de dezembro, a pedido do MPF, a Justiça Federal em Roraima mandou o Executivo apresentar um novo plano de combate ao garimpo na terra yanomami.
A primeira reunião ministerial de 2024 tratou do problema. Na última terça (9), o presidente Lula convocou as principais pastas ligadas ao tema e anunciou que o governo investirá R$ 1,2 bilhão para aumentar a presença do Estado na região.
O governo afirma que criará uma "casa de governo" em Roraima para unificar as ações. O anúncio foi feito pelas ministras Sonia Guajajara (Povos Indígenas), Marina Silva (Meio Ambiente) e Silvio Almeida (Direitos Humanos), que foram à terra yanomami na quarta (10) com a presidente da Funai, Joenia Wapichana.
Indígenas veem avanços em 2023, mas dizem que as comunidades ainda estão debilitadas. Segundo uma líder yanomami ouvida pelo UOL, a destruição promovida pelo garimpo ainda mantém muitos trechos da floresta e dos rios impraticáveis para caça, pesca e agricultura.
O povo yanomami está com dificuldade de retomar a vida como era antes, de plantar os alimentos tradicionais, caçar e pescar. O que o povo quer é recuperar a sua autonomia, usar seus próprios recursos e cuidar da terra, como faziam os antepassados.
Carla Lins Yanomami, presidente da AMYK (Associação das Mulheres Yanomami Kumirayoma)
Centro de saúde aberto em abril foi fechado 6 meses depois
Uma unidade de atendimento inaugurada na terra yanomami no fim de abril acabou fechada no mesmo ano. O Centro de Referência em Surucucu, aberto com capacidade para atender até 100 pacientes, foi desmontado no fim de outubro.
O centro foi criado para fazer exames, consultas e atendimentos de urgência, além de tratamento de malária e desnutrição. Uma das carências do território yanomami, que era suprida pela unidade, é o atendimento pré-natal, que ainda não chega a todas as indígenas gestantes.
Procurado pelo UOL, o Ministério da Saúde afirma que uma unidade permanente será construída no local. Segundo a pasta, as estruturas do centro inaugurado em abril "eram provenientes de parceria com a organização Expedicionários da Saúde (EDS) em caráter provisório".
Governo promete ampliar unidade de saúde superlotada
O Ministério da Saúde afirma que vai ampliar a Casa de Saúde Indígena (Casai), em Boa Vista. O local recebe os yanomamis que não podem ser atendidos nas aldeias, mas está superlotado e é alvo frequente de queixas dos indígenas. O governo afirma que o processo de licitação para a obra já foi aberto.
Em dezembro, uma menina yanomami de 11 anos sofreu um estupro coletivo na unidade. O caso levou a Hutukara Associação Yanomami a pedir reforço na segurança e a criação de uma ala exclusiva para mulheres e crianças.
Para a Hutukara, os indígenas só deveriam ser levados para Boa Vista em último caso. O ideal, segundo a associação, é que eles sejam tratados nas aldeias. "É obrigação levar os profissionais de saúde para atendimentos in loco. A cidade não é segura para os yanomamis", afirma a entidade em nota.
O governo também promete construir um hospital indígena em Boa Vista. O anúncio foi feito pelo chefe da Sesai (Secretaria de Saúde Indígena), Weibe Tapeba, em entrevista coletiva na terra yanomami na última quarta.
Registros de doenças cresceram no segundo semestre
Os registros de malária, gripe e diarreia entre os yanomamis aumentaram na segunda metade de 2023. Todas essas doenças tiveram mais casos notificados em 2023 do que no ano anterior, mas isso se explica em parte pelas testagens em massa que passaram a ser feitas na atual gestão.
O aumento da malária é uma das maiores preocupações no território. Além dos focos de proliferação do mosquito transmissor, que são fortalecidos com a permanência do garimpo, uma das dificuldades é garantir que os pacientes façam o tratamento até o fim.
Garimpo resiste sob domínio de facções
Indígenas e governo têm acumulado evidências de que o garimpo vem se restabelecendo no território yanomami. Em balanço divulgado no último dia 5, o Ibama afirmou que agentes foram recebidos a bala pelo menos 10 vezes em ações de fiscalização no ano passado.
Parte da mineração ilegal no território está sob comando de facções. Em abril, um líder do PCC foi morto ao lado de outros três garimpeiros em um confronto armado com agentes da Polícia Rodoviária Federal e do Ibama, dentro da terra indígena.
Indígenas relatam que a entrada de barcos e aviões tem aumentado nos últimos meses. Em novembro, uma aeronave clandestina sobrevoou uma aldeia de indígenas isolados que vivem no território. No mesmo mês, um avião com garimpeiros caiu em um rio e foi localizado pelos indígenas.
Governo e oposição usaram dados distorcidos em comparações
O ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) usou um dado falso para atacar o governo Lula. Na última segunda (8), ele publicou em suas redes sociais o título de uma reportagem que afirmava que as mortes de yanomamis cresceram 50% em 2023 em comparação ao ano anterior.
A informação foi baseada em um levantamento incompleto. A publicação usou um relatório do Ministério da Saúde que apontava 209 mortes em 2022, mas o documento só contava os casos de janeiro a setembro. O total de óbitos daquele ano foi 343.
O governo Lula também fez uma divulgação com um dado incompleto. No último dia 5, o Ministério da Saúde afirmou que reduziu o número de mortes, de 343 em 2022 para 308 no ano passado. O dado de 2023, porém, só conta os casos até o dia 30 de novembro, e o total do ano ainda não foi divulgado.
Procurado, o ministério afirma que o número de mortes ainda não foi consolidado. Segundo a pasta, o processo de atualização dos números "requer investigação das notificações, e se tornou ainda mais complexo diante da precarização dos sistemas de notificação e vigilância após anos de abandono e desmonte da saúde indígena pelo governo passado".