Como livro raro furtado em SP há 16 anos mobilizou PF e até Scotland Yard
Maurício Businari
Colaboração para o UOL
01/07/2024 04h00
Furtado há 16 anos de uma biblioteca em São Paulo, o livro raro traz litogravuras de cenas do Rio de Janeiro no século 19 e pode custar entre R$ 90 mil e R$ 210 mil em sites de leilões internacionais.
O que aconteceu
A Polícia Federal recuperou o livro "Souvenirs de Rio de Janeiro", pintado à mão por Johann Jacob Steinmann entre 1834 e 1835. A obra estava em posse de um colecionador brasileiro que a adquiriu legalmente em um leilão em Londres, sem saber que, antes da compra, ela havia sido furtada. A descoberta ocorreu após uma investigação conjunta entre a Polícia Federal e a Scotland Yard.
Após a perícia, a obra será devolvida a São Paulo. O livro será reintegrado à coleção de obras raras da Biblioteca Mário de Andrade, onde o acesso será restrito e controlado devido ao seu valor histórico e cultural. Questionados sobre o valor monetário da obra, a Polícia Federal e a Secretaria de Cultura da cidade de São Paulo não responderam.
Na internet, porém, é possível encontrar exemplares do mesmo livro, avaliados entre R$ 90 mil e R$ 210 mil em casas de leilões internacionais como Forum Auctions e Bonhams. Versões fac-símile, reproduções do original, publicadas já no século 20, podem ser encontradas para a venda em sites na internet, por valores em torno de R$ 120. É possível também baixar gratuitamente exemplares originais do livro de Steinmann, que estão digitalizadas em PDF nos sites da Biblioteca Nacional e da Biblioteca Digital Luso-Brasileira.
O exemplar furtado em 2008, segundo a PF, estava entre os 34 livros e nove álbuns de gravuras que foram furtados da Coleção de Obras Raras e Especiais da Biblioteca Mário de Andrade. Até o momento, segundo a secretaria, 14 livros, um álbum de gravuras e duas litografias já foram recuperados e incorporados ao acervo.
Ouvida pelo UOL, Letícia Squeff, professora de história da arte da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), destaca a importância histórica e cultural do livro. "A obra é importantíssima, por ser um dos primeiros álbuns de gravuras do Rio de Janeiro, publicado em 1834, na Basileia. As imagens originais foram feitas in loco por Steinmann e outros artistas, e mais tarde aquareladas por Fredéric Salathé e transformadas em litografias," explica.
O livro se destaca por ser uma das primeiras representações em litografia da cidade do Rio de Janeiro no século XIX. "Numa época em que ainda não havia fotografia, o Brasil era pouco conhecido na Europa. O álbum era uma novidade, e as estampas são delicadamente pintadas à mão, tornando cada exemplar uma obra de arte," acrescenta.
O Brasil precisa evoluir na forma como lida com a segurança e salvaguarda de seus acervos, segundo Squeff. "Diversos profissionais brasileiros estão cientes das inovações nos museus internacionais, mas faltam verbas para implementar políticas de digitalização e controle dos acervos," destaca.
A recente volta do Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) às atividades, após ter sido enfraquecido no governo Bolsonaro, e o fortalecimento dos órgãos de cultura são vistos como positivos pela professora. "Espera-se um fortalecimento das instituições de resguardo e conservação do patrimônio de obras como esta do Steinmann", acredita.
Pioneiro da litografia
Steinmann teve um impacto significativo nas artes gráficas do Brasil. "Ele chegou em 1825, contratado pelo governo brasileiro para criar uma oficina e dar aulas. Ele imprimiu mapas e viajou representando várias capitais," explica Squeff. "Suas gravuras ajudaram a consolidar uma imagem do país como uma nação de natureza rica e belas paisagens."
A técnica da litografia permitiu a reprodução rápida e barata de imagens. "O Steinmann, aluno do inventor da litografia, Alois Senefelder, contribuiu para a formação de novos artistas e a produção de impressos no Brasil," destaca.
A litografia, também conhecida como litogravura, é uma técnica que consiste em criar marcas em uma matriz utilizando um lápis oleoso. Ela é baseada no princípio da repulsão entre água e óleo, obedecendo a seguinte sequência:
- O desenho é feito na pedra com um lápis gorduroso.
- A pedra é umedecida, bloqueando as áreas não desenhadas com água.
- Com um rolo, é aplicada tinta de impressão gordurosa.
- A imagem é pressionada contra o papel.
Existem vários artistas e fotógrafos contemporâneos de Steinmann com trabalhos similares sobre o Brasil. "Pintores viajantes como Debret e Rugendas, assim como fotógrafos como Victor Frond e Marc Ferrez, produziram importantes álbuns de vistas," afirma a professora.
O álbum de vistas era um tipo de publicação popular na época. "Ele acompanhava o surgimento do turismo, permitindo que pessoas que não podiam viajar comprassem álbuns de lugares exóticos como o Brasil, colocando as estampas nas paredes de suas casas," explica.
O que dizem as autoridades
Em nota, a Polícia Federal afirma que a repatriação das obras literárias representa um marco fundamental para o Brasil, "demonstrando um compromisso renovado com a preservação do patrimônio cultural e estabelecendo um precedente essencial para a recuperação de elementos históricos".
Segundo a SMC (Secretaria Municipal de Cultura) da capital paulista, a obra não será exibida ao público devido à sua raridade. A pasta informa ainda que o acesso a obras raras é restrito aos funcionários do setor. "Para consultar o acervo, é necessário agendamento prévio, com justificativa do motivo da pesquisa e seguir outros procedimentos externos", avisa.
O mobiliário da sala de consulta foi reorganizado pela SMC para os bibliotecários ficarem próximos aos pesquisadores. Eles só podem manusear uma obra por vez; e para qualquer item sair das instalações da biblioteca - para exibições, por exemplo - é necessária aprovação do Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional).
O Brasil está em 26º lugar entre os alvos do comércio ilícito de bens culturais, segundo estudo publicado pela Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo). Esse mercado "paralelo" chega a movimentar até US$ 15 bilhões por ano no mundo.